A gente tem a impressão de que o governo já entrou em campanha eleitoral faz algum tempo, mas ele nega, de forma que deve ser mentira, porque o governo não mente aos cidadãos. Contudo, assim ou assado, mentira ou não, o assunto tem sido bastante discutido, geralmente levando ao debate sobre o terceiro mandato do presidente Lula, que ele, com o ar docemente constrangido e aparentando, não sei se intencionalmente, uma convicção bem menos incisiva que em relação a quase tudo mais, diz que não quer. Na quase impossível hipótese de ele me dizer isso pessoalmente, eu fingiria acreditar por uma questão de educação e respeito ao cargo dele. Mas claro que, como venho dizendo há bastante tempo, não boto fé nessa negativa – para mim está feericamente estampada no semblante dele a vontade de ficar até quando Deus permitir. Acho que nunca vi alguém tão feliz da vida quanto ele, subindo e descendo em aviões e entrando e saindo de castelos e palácios, claro que ele está num barato permanente.
Também como antes, não acho tão improvável assim que um terceiro mandato se concretize, nos moldes de uma das muitas fórmulas a que se pode recorrer, inclusive um mandato-tampão, enquanto se elabora e vota uma nova constituição, seguido de ainda outro mandato para o mesmo ocupante, o que naturalmente, seria facultado pela nova carta. Surpresa nenhuma. Já aconteceu conosco e, em linhas gerais, acontece em toda parte, geralmente em países atrasados. Para mim, golpe; para outros, manobra legítima, contanto que respeitados os rituais que nos acostumamos a identificar com a democracia e que, muitas vezes, são tão democráticos quanto as eleições a bico de pena da Velha República, por exemplo.
Ouso oferecer a hipótese, que acredito ser amplamente corroborada pelos fatos, de que a verdadeira vocação do presidente Lula não é ser presidente. Para isso ele não tem muita paciência, ainda mais com esse negócio de sentar para despachar, estudar, debater, resolver. Deve ser por isso que tem tantos ministros. Aparece um problema e, se ele, muito implausivelmente, já não tem um ministro especial para problemas que aparecerem, cria um num piscar d\’olhos. Acredito piamente que, se ele pudesse mandar sem governar, ficaria ainda mais feliz. Mandar é ótimo, ter poder é indescritível. Governar é que é chato, não só porque é trabalho, ainda mais para quem nunca trabalhou na vida, como também só traz dor de cabeça, provoca inimizades, chateia nas horas mais incômodas e assim por diante.
A verdadeira vocação dele, continua minha hipótese, é ser rei. Excetuando o feio hábito de não aparecer pessoalmente nos locais de calamidades públicas e tragédias, hábito este que acho que já começou a rever, ele faz com extraordinário gosto tudo o que um rei contemporâneo faz. Livre das amarras dos despachos e da burocracia, podendo até falar mal dos governantes, já que não administraria e seria vitalício e estes são passageiros, terá condição de dedicar-se em tempo integral ao que de fato gosta de fazer e, a seu modo, sabe fazer. Não deixa de ser uma ideia. Por que não, afinal? Somente por que alguns descompreendidos e eu não queremos? Creio (no meu caso, melhor trocar de verbo e botar “receio”) que, se for realizado um plebiscito, também identificado bobamente com democracia, a ideia do terceiro mandato seria aprovada, talvez até retumbantemente.
E não há por que supor que, com essa permanência no poder, pois ninguém sabe hoje em quanto ela se prolongará, uma tal pressão internacional de que já ouvi da boca de um comentarista limitará a permanência do presidente no poder. Tampouco creio que vá haver pressão internacional alguma. Da mesma forma que velho rico é excêntrico e o mesmo velho, se pobre, é broco e chato, arranjariam logo um nome artístico para o novo regime que mascararia o fato de estarmos ingressando numa era neo-peronista, e dando um enorme passo atrás. “Esse é o cara”, disse o presidente Obama e a exegese correta é a mais óbvia. Lula era um problema iminente, pois viria para reformar a fundo, para mudar e contrariar interesses arraigados e poderosos. Como se vê, não é nada disso, antes pelo contrário, é agir “como sempre se fez neste país”. Quem era poderoso ficou mais, quem era rico ficou mais. Os ricos continuam a não pagar impostos e os pobres e remediados custeiam sem saber uma “distribuição de renda” que não existe para os ricos. Ou seja, ele passou de problema a solução, menos um peso enorme no já carregadíssimo balaio de preocupações, não apenas de Obama, mas dos europeus, dos banqueiros, das grandes empresas, de todo mundo que estava preocupado em ser incomodado ou contrariado com a ascensão da “esquerda” ao poder. Arrenego da esquerda. O presidente que nós temos é o que eles pediram a Deus.
Tudo bem, é uma, mas esquerda não. Lula talvez tenha vindo para reformar, mas, assim que se viu no poder, seu olhar mudou, numa prova viva de que a sociologia do conhecimento ainda tem terreno fértil para estudos de caso. A verdade tem uma cara quando se está por baixo, outra quando se está por cima. Nada como a posição social do indivíduo, dizia-se antigamente. Pois é, vista de cima a realidade é percebida por outra ótica e o operário utópico, visionário e agitador deu lugar ao bom burguês bonachão e paternal, que chegou, não para mudar, mas para conservar e aperfeiçoar o que já está aí. Tenho grandes reservas sobre como está sendo feita essa conservação e, notadamente, o aperfeiçoamento, que me parece somente adiar ou, ao longo prazo, agravar nossos problemas. Mas é melhor, por via das dúvidas, irmos nos acostumando à ideia de um terceiro mandato. E um quarto, um quinto, um sexto etc.
O Globo, 31/5/2009