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Nem com nem sem farda

 

Em momentos como o atual, costumam ressurgir os messias, acenando com um porvir redentor ou então velhos fantasmas reencarnados

Ariano Suassuna dizia que o Brasil é sebastianista, isto é, acredita que o rei Dom Sebastião, morto em 1578 na Batalha de Alcácer-Quibir, voltaria e instauraria em Portugal o Quinto Império. Com o tempo, a crença se espalhou e chegou a algumas regiões do Brasil, principalmente no Nordeste. No “Romance da Pedra do Reino”, Suassuna aborda o tema e chama Dom Sebastião de “o desejado, rei de Portugal, do Brasil e do Sertão”. Se eu aprendi direito com a Divina Cleo no Curso de Letras da Faculdade Nacional de Filosofia, a profecia ganhou força com a pregação do Padre Antônio Vieira, para quem, depois dos assírios, dos persas, dos gregos e dos romanos, seria a vez de os portugueses realizarem o seu sonho imperial. Quem fez dessa espécie de nostalgia do futuro poesia foi Fernando Pessoa, que se referia ao “Encoberto” como “Louco, sim, louco porque quis grandeza”. No seu livro “Mensagem” estão talvez os seus mais conhecidos versos: “Ó mar salgado, quanto de teu sal/São lágrimas de Portugal! (...) Valeu a pena? Tudo vale a pena/Se a alma não é pequena”. No Brasil, o sebastianismo teve um trágico momento histórico com a Guerra de Canudos, onde Antônio Conselheiro anunciava a volta de Dom Sebastião para restabelecer a monarquia e derrubar a República. Em 1897, o arraial insurgente foi arrasado pelo Exército.

Diluído pelo tempo, o mito permaneceu de forma difusa no nosso imaginário popular e pode reaparecer nas situações adversas, quando os eleitores correm atrás de uma figura messiânica para, milagrosamente, resolver problemas terrenos. É uma herança portuguesa que, deturpada, virou paródia. Diante do quadro atual, de desencanto e desilusão, a rejeição aos políticos em geral, que está se manifestando em conversas e em pesquisas, ameaça se transformar em rejeição à própria política, o que seria um desastre para a democracia.

Nessas horas, costumam ressurgir os messias, acenando com um porvir redentor ou então velhos fantasmas reencarnados, oferecendo idealizado um passado tenebroso, isto é, o retrocesso ao obscurantismo. Por via das dúvidas, não custa lembrar que já provamos desses venenos — uma vez sob a forma simbólica de uma vassoura que iria varrer a sujeira do país; outra vez sob a forma de um caçador de marajás, sem falar no golpe mais traumático, que nos foi imposto pelos tanques e fuzis. Bem ou mal, soubemos nos livrar de todos, deixando a advertência de que o nosso processo democrático já adquiriu maturidade suficiente para exonerar os aventureiros e afirmar que salvador da pátria nunca mais, com ou sem farda.

O Globo, 31/10/2015