A façanha editorial do momento é o lançamento da obra teatral completa de Nelson Rodrigues feita pela Editora Nova Fronteira. Com os textos do trágico brasileiro em mãos, pode-se tentar uma análise do muito que significou e significa para a nossa cultura a presença entre nós de um autor com essa estranha e dilacerante força criadora. Desde que "Vestido de Noiva" subiu à cena em 28 de dezembro de 1943, no Teatro Municipal, tivemos todos a certeza de que o Brasil produzira, afinal, um gênio da literatura teatral.
Foram momentos de espanto e de alegria que levaram Manuel Bandeira a dar então, em entrevista, a primeira opinião entusiasmada sobre a peça. A palavra "tragédia" foi usada então para definir "Vestido de Noiva".
Vinha Nelson Rodrigues substituir o primado da ação no teatro pela precedência da paixão. Entre ação e paixão tem oscilado a arte cênica desde que os gregos a elevaram ao ponto culminante do uso da palavra como obra de arte. E uma das características da tragédia é a paixão.
Vale a pena lembrar Nietzche que, em seu livro "Origem da Tragédia", fala na escolha, pelos gregos, de suas duas divindades da Arte: Apolo e Dionisos, a arte apolínea sendo exaltação do corpo, das formas físicas e do sonho, a arte dionisíaca sendo a embriaguês e a entrega, com os dois, o artista do sonho apolíneo e o artista da embriaguês dionisíaca tendo criado a tragédia ética. O sonho e o horror fizeram sua base, com o horror tomando a frente.
Em Nelson Rodrigues existe a predominância do dionisíaco sobre o apolíneo. Dificilmente desce ele o tom de uma tragédia. Começa no ponto mais alto de uma situação, de uma paixão, e ali permanece. É indispensável que se lembre uma verdade: a tragédia não é romântica, não faz chorar, não comove, isto é, não move o coração e provoca às vezes uma indescritível admiração. A tragédia emociona, causa espanto, medo. Assim é Nelson Rodrigues. Como não quer perder tempo em levar uma platéia a lágrimas ou suspiros, pode chegar ao assombro, ao pasmo. O drama costuma ser acreditável, a tragédia pode ser inaceitável.
Este, o mundo em que Nelson Rodrigues situava seus personagens. Era um mundo sem salvação, sem a menor saída, como se um destino - o destino que, por decisão dos deuses, determina o caminho de cada um, mandasse em tudo. Nas vésperas da era cristã, já o teatro grego perdera muito de sua força e o cristianismo surgira como o oposto da tragédia. A palavra mágica, no caso, era "redenção".
Para o herói grego não há redenção possível: está irreversivelmente condenado. Nos tempos cristãos, surge a redenção como arte, estando ao alcance de qualquer um, o que não elimina a tragédia, tornando-a, ao contrário, mais forte, porque inserida numa permanente reminiscência dos tempos gregos que, tendo existido uma vez, deixaram raízes eternas em todos os que viemos depois. Como disse Ésquilo numa de suas tragédias: "Imagine, forasteiro: quanto teve de sofrer este povo para poder vir a ser tão belo! E agora vem comigo à tragédia, e comigo sacrifica sobre o altar das duas divindades!".
Em termos brasileiros foi Nelson Rodrigues quem nos impôs a presença da tragédia numa terra talvez inteiramente estranha a trágicos sentimentos, mas não tão estranha à palavra paixão. As tragédias de Nelson Rodrigues se firmam numa linguagem genuinamente brasileira, quase que se diria, genuinamente carioca.
Nisto se revela um autor de teatro como dificilmente voltaremos a ter, pelo menos dentro do panorama de literatura feita para o palco, em geral seguindo uma linha de puro aviltamento cênico ou de brincadeiras verbais sem grande alcance.
Os personagens de Nelson eram bicheiros, prostitutas, donas-de-casas, jornalistas, fotógrafos, porteiros de edifícios, coveiros, tias, delegados, padres, Sônia, a menina de 15 anos de "A valsa número 6" (ter visto a menina Dulce Rodrigues interpretando Sônia no Teatro Serrador em 1951 é lembrança inesquecível), chofer, garçom, grã-finas, operários - esta é a sua gente, gente do subúrbio, da favela, de casas milionárias, de redações de jornal, com o futebol ao fundo, o Fluminense, o Flamengo e os outros, os jogadores de então - tudo é matéria trágica do dia-a-dia - e mais primas, coveiros de crianças e o coro das pretas descalças, adolescentes, velhos, avós, vendedor de pentes, criadas, cegos, as três viúvas de luto permanente em "Dorotéia" - todos, todas e tudo compondo o mundo carioca de Nelson Rodrigues em que ficamos para sempre retratados, em traços fortes e linhas indestrutíveis.
O extraordinário Nelson Rodrigues do jornalismo puro, o ficcionista de personagens diferentes, o homem da "Vida como ela é", se coabitam com o trágico do teatro, também o explicam e definem.
O "teatro completo" de Nelson Rodrigues compreende, em quatro volumes, as seguintes peças: "A mulher sem pecado", "Vestido de Noiva", "Valsa número 6", "Viúva, porém honesta", "Anti-Nelson Rodrigues", "Álbum de Família", "Anjo Negro", "Dorotéia", "Senhora dos Afogados", "A falecida","Perdoa-me por me traíres", "Os sete gatinhos", "Boca de ouro", "A serpente", "O beijo no asfalto", "Toda nudez será castigada", "Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária". Independentes dos quatro volumes em que análises e ensaios tratam das tragédias, foram também editados pela Nova Fronteira volumes pequenos, com as peças individuais, para uso de diretores e atores bem como de leitores em geral.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 23/11/2004