Já se vão dez anos daquela reunião ecológica, codinome Eco-92, que nos deixou tão vaidosos com a cara limpa e florida do Rio. É verdade que precisou botar canhões do Exército apontando para a favela da Rocinha. Mas como mudou a Rocinha! Hoje já tem a categoria de bairro, um bairro operoso e próspero, que até já exporta moda e modelos para o exterior.
Infelizmente, vão se amortecendo também as saudáveis lembranças da febre ecológica suscitada pela dita reunião. Ficou contudo, espero que inapagável, a consciência da necessidade de se preservar esta nave espacial que é o nosso planeta Terra, saqueado e assassinado imemorialmente pelo homem. O Brasil já foi proclamado o vilão maior desses crimes com a alegada destruição da Amazônia. Depois, coube o lugar aos Estados Unidos, com aquele tremendo desastre ecológico de vazamento de óleo no Alasca - lembram-se? - depois veio a Guerra do Golfo com os incêndios dos poços de petróleo e depois as guerras sucessivas, o eterno conflito entre Israel e Palestina e finalmente, quase como um aviso simbólico, a destruição das belas torres gêmeas de Nova York, que considerávamos um marco do homem sobre a Terra.
Mas não a- dianta a gente estar caçando culpados. Ninguém, nesse tópico, é inocente. Se os subdesenvolvidos devastam floresta e fauna, os desenvolvidos são responsáveis pela poluição irreparável da atmosfera, do próprio e insubstituível ar que respiramos. O que uma grande cidade, com os seus milhões de veículos, pode poluir num dia, o Brasil, com toda a Amazônia, não poluiria num ano. E apesar de todas as defesas pelos territórios indígenas, diga-se a verdade: o índio nunca foi conservacionista. Se não faz mal maior é porque lhe faltam os meios. Coivara é palavra de índio e traduz precisamente a técnica de tocar fogo na mata e plantar na cinza, abrindo o buraco da semente com um pau de ponta. E foi do índio que o caboclo herdou o costume da coivara. Já o nosso saudoso mestre Mario Palmeio no seu livro famoso Vila dos Confins, muito antes da ecologia estar em moda, rastreava a ação destruidora do caboclo a queimar, sozinho, léguas e léguas de terra, para fazer todo ano o seu roçado novo. Usando só o caco da enxada, porque o velho arado, conhecido já dos povos mais antigos, nunca foi conhecido aqui.
O nosso arado é o fogo. Aradagem só nos veio com o trator.
Também nunca ouvi falar de um índio que deixasse de matar um bicho para lhe preservar a espécie. Aliás, há uma questão que sempre me é proposta quando eu falo com os caboclos sobre a preservação da vida animal: "A gente come o bicho, ou deixa o bicho comer a gente?" E me lembro de uma onça maçaroca, animal em extinção, que os meus visinhos prenderam e mataram, depois que ela comeu vários bezerros e cabritos e, por fim, devorou duas crianças. Vá falar em conservação de espécie a um homem que teve um filho comido de onça. A maçaroca era um animal lindo, talvez o último espécime que restava por ali.
Mas comia gente. E a mais antiga tradição da cultura humana é preservar, antes de tudo, a nossa vida.
E a planta? Fala-se muito, e com razão, na devastação ambiental causada pelas plantações de soja. A soja, porém, é vital para a subsistência de bilhões de seres humanos que pululam hoje sobre a Terra. Soja não é vinho, não é flor de exportação, não é seda para luxo. Soja é comida! E temos de produzir comida, não apenas para os nossos 160 milhões de patrícios, mas para todos os outros milhões de gente que precisam do nosso grão. Como precisam do trigo, do arroz, do açúcar - e do gado.
O importante é descobrir a fórmula que concilie a conservação da Terra com a necessidade de alimentar os seus habitantes. Talvez dando à agricultura a mesma prioridade que se deu à industrialização. Não adianta rememorar as florestas abatidas já há milênios, no Oriente, na Europa e, recentemente, na América do Norte. Ah, as gigantescas sequóias de 300 anos! Não basta chorar as araucárias do Paraná, derrubadas para abrir lugar ao café e à soja. Pois se nós não resolvermos o problema essencial que é conciliar a preservação da Terra com a sua necessidade de alimentos - então teremos mesmo o Fim do Mundo - trazido pela fome, que é bem pior que o final trazido pelo frio e pelo fogo.
Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 31/08/2002