O homem começou a falar em verso, não em prosa. Suas frases iniciais eram curtas, cadenciadas, muitas vezes repetindo sons e criando, com isto, a rima. Até hoje, grande parte de pensamentos adota o verso. Provérbios e anexins condensam filosofias e deles já se fizeram dicionários. A fala em prosa viria mais tarde quando conjuntos de palavras foram levadas a explicar tudo e o homem precisou de uma lógica para lidar com o dia-a-dia.
No começo, a imitação dos ruídos que a própria natureza emitia (o vento nas folhas, o canto de pássaro, uma pedra rolando no morro) contribuía para que as frases fossem ritmadas. A natureza se encarregava de fornecer uma cadência permanente que os primeiros habitantes da terra absorviam para usar no que desejavam dizer.
O poeta e ensaísta Robert Graves, em seu livro "The white goddess", enumera ritmos que se transformavam em versos. O ferreiro que batia três vezes na forja primitiva de então, levava a frase a surgir também em medida trinaria; o cair dos remos na água criava uma cadência binária; o galope do cavalo era espaçado, e as frases nele inspiradas se espraiavam com mais largueza (o admirável livro de Graves acaba de ser publicado no Brasil, com o mesmo título, "A deusa branca", e dele falarei com minúcias em artigo a sair brevemente nesta página).
O verso continuou participando de narrativas, e vale a pena citar os versos latinos que imitavam o galopar do cavalo: "quadrupedantem putrem sonitu qualit úngula campum" que, há cerca de 150 anos, um poeta português precisou de dois decassílabos para traduzir "Das patas com o bater em pó desfeito/ soa o chão com o tropel quadrupedante". O ritmo poético permaneceu na obra de muitos prosadores, como Vieira que, usou, em seus "Sermões", frases que eram perfeitos decassílabos.
Este preâmbulo se destina a chamar a atenção para o poema de Maria Helena da Fonseca Costa, "Noite de vagalumes", composto em versos narrativos, num ritmo vasto, erguido em 277 unidades de seis linhas cada, no total de 1.662 versos. Durante séculos foi o poema narrativo de uso corrente, alcançando o prestígio que o romance passou a ter depois de "Dom Quixote".
Maria Helena fez, na realidade, um romance em versos, preocupando-se com a história que desejava narrar ao mesmo tempo em que a fixava em cadências naturais, com os personagens vivendo suas vidas, dizendo as palavras do momento, no mesmo hausto em que a história do país se desenvolvia, com presidentes mineiros e paulistas, as ditaduras predominando no tempo, as revoluções brasileiras aparecendo em versos, as crianças do poema vivendo sua infância junto de regatos, plantações e bichos, em descrições minuciosas.
Os lugares também são descritos, como nestes versos do começo, quando a autora se põe a organizar o ambiente da sua narrativa: "Na mesa, de toalha rasgada guarnecida, / coloca seus tristonhos, simples, pobres, gastos, / usados apetrechos. Quantidade enorme /de moscas sobrevoava, agitada, esquecida, / de lá para cá, de cá para lá, sem rumo / à procura de pouso, de lar, de comida."
Maria Helena usa, em seu poema, as palavras normais, os substantivos do dia-a-dia; se precisa dizer "comida", escreve "comida" mesmo, se quer dizer "guloso", não emprega outra palavra. Embora não muito comum hoje, mantém o poema narrativo seus apaixonados. Várias analogias com versos dessa categoria têm aparecido na Inglaterra e na França.
Há mesmo um consenso entre analistas literários no sentido de considerar toda a arte de escrever como "narrativa". Até o retrato de uma paisagem, feita por um escritor, pode ser tida como a narração de um espaço. Isso faz Maria Helena da Fonseca Costa em seu poema "Noite de vagalumes", que aparece agora em livro, que também "narra" objetos, ao mesmo tempo em que "narra" uma história.
Adquire o verbo "narrar" uma dimensão que vai muito além do significado normal que a ele atribuímos. Estamos sempre narrando. Narrando como somos, o que fazemos, narrando o que pensamos, o que sonhamos.
A narrativa de Maria Helena da Fonseca Costa aparece em livro sob o título de "Noite de vagalumes". Lançamento da Editorial Nórdica, produção de Jaime Bernardes, capa de Marcos Reis de Queiroz.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) 27/07/2004