Esse negócio de sermos colonizados é muito mais sério do que se imagina. Até eu, que já pensei muito no assunto e sou observador viciado de suas manifestações, vejo uma novidadezinha todo dia. Recentemente, tenho certeza de que, ainda nos dias em que o nosso presidente estava curtindo com a cara do presidente Bush por causa da crise de lá, que nem o Atlântico atravessaria (não precisou, é cabotagem, aqui mesmo pelas beiradas da gente), havia um pessoal meio chateado porque a crise não tinha chegado, ou, muito pior, não ia chegar ao Brasil. Mais uma vez de fora, eles lá se esbaldando numa crise desenvolvidíssima, cheia de siglas e frases feitas em inglês chiquíssimo e nós aqui, como nativos de uma ilha primitiva.
Como quando fui à Copa do México de 84 e não senti o problema da altitude em Guadalajara. Toda a delegação ficou preocupadíssima com essa situação anômala, talvez vergonhosa para o Brasil e certamente para a Bahia. Vinha gente me consolar - não se preocupe, você vai sentir, tenha fé. Até Sérgio Cabral (refiro-me ao pai; o jovem não tem problema de altitude, todos já sabemos), que de início parecia ser também imune, teve um problemazinho de altitude e ficou muito feliz em sair do rol dos excluídos.
Eu, contudo, voltei da Copa sem ter experimentado o problema da altitude uma vez sequer e deve ter sido por motivo análogo que não integrei o rol dos descontentes com a possibilidade de a crise ignorar o Brasil. Nunca temi o vexame porque sabia que o presidente, como acontece de quando em vez, não fazia a mínima idéia do que estava dizendo e logo deixaria gozações e marolinhas para ficar tão enervado que desfechou outro daqueles improvisos de pastor evangélico, marchando de um lado para o outro e xingando o FMI e banqueiros sortidos com grande vigor.
Que coisa, não é? O liberalismo, em qualquer das muitas guisas com que tem aparecido ou sido batizado por conveniência através da História, entra periodicamente em parafuso. Depois, aparentemente aprende alguma coisa e se renova, sempre à custa do dinheiro público, ou seja, em flagrante violação dos princípios liberais, quaisquer que sejam os apelidos que estejam usando na ocasião. Depois que o tranco passa e muito dinheiro muda de mão, embora não de classe, ele ressurge vigoroso e arrogante, execra qualquer interferência do governo e passa a de novo se reger exclusivamente por suas "leis".
Leis, claro, que justificam a ladroagem, o trambique e a perversão financeira da economia. O mercado e seus mecanismos acabam constituindo um universo à parte do que poderíamos chamar economia real, a economia que tem a ver com a produção e circulação de bens. O mercado, que se reporta a ela por meios cada vez mais arcanos, acaba por construir sua própria riqueza, que é falsa, porque sem lastro, sem correspondente na economia real. Criam-se meios de pagamento fundados em outros meios de pagamento por sua vez fundados em outro e em outro e em outro e essa ficção vive em permanente corda bamba, razão para o famoso nervosismo do mercado. Trabalha-se com muito mais dinheiro (meios de pagamento) do que realmente há, numa mirabolância fictícia mal escorada em previsões, estatísticas e expectativas.
É, naturalmente, necessário um bom funcionamento de todos os intricadíssimos elos que compõem essa loucura. Quando, já em cima de uma economia não em tão boa saúde, acontece um rombo sério, o Inevitável, mais uma vez, bota sua desagradável carantonha para fora. A riqueza que o mercado negociava, sobre a qual ele se fundava e justificava, não existia, afinal. A lembrança de que não se come papel volta a assombrar corações e mentes e aí dá-se isso e muito mais, num script de detalhes diferentes, mas igualzinho aos anteriores. E as defesas talvez tenham se sofisticado um pouco, ou o capital esteja mais concentrado, favorecendo certa decisões de grande repercussão.
O mercado, claro, é de enorme perversidade e seu metabolismo lembra um pouco o daquele monstro do filme Alien. Ele sobrevive a qualquer custo, porque, a esta altura, já está em operação o Esquadrão Abutre, a turma que sabe que, nessa esculhambação gerada pelos seus antes impecáveis mecanismos, seus técnicos pomposos, seus economistas semelhantes a deuses, seus escroques de roupas de grife e gostos dispendiosos, seus impostores conscientes ou não, enfim, há dinheiro, muito dinheiro a ganhar. Hienas, chacais, urubus, besouros rola-bosta e até formiguinhas espertas já estão catando todos os papéis que despencaram e que, sabem eles, eventualmente terão de subir, por causa de sua sólida vinculação a bens não financeiros, à economia real.
Depois que, com a considerável ajuda de nosso dinheiro - até porque eles não têm dinheiro e, em alguns casos, nunca de fato tiveram -, estiver tudo consertado (Lula já deu esbregue e não se vai brincar com esbregue do Homem, treme até o Equador), declara-se tudo renovado: mercado saneado, vacinado e à prova de percalços maiores. E, tendo cumprido sua parte, que o governo se meta o mínimo possível, porque as leis do mercado coisa e tal, porque tal porque vira, porque isso mais aquilo, porque a raiz cúbica da margem de lucro mediana do pequeno empreendedor equivale à projeção da função da qual o crescimento futuro virá a ser, tendo-se assim que o co-seno de não sei o que logaritmiza o efeito multiplicador dos insumos não perecíveis e a Constante de U. Allsuckers (ou de Lotta Bullcrap ou de Heres Shittin?ya ou de qualquer economista que escreva em inglês e cultive alguma excentricidade, tal como não escovar os dentes ou soltar ventosidades em público) prova tudo empiricamente. Quanto a nós, podemos ficar tranqüilos, pois temos o nosso presidente para xingar a crise por nós. Xingue ela aí, Presidente.
O Globo (RJ) 12/10/2008