Autor relembra a trajetória de Tom Jobim, que morreu em 8 de dezembro de 1994. Interligando a formação musical clássica, os aprendizados na noite carioca, o surgimento da bossa nova, as parcerias com Vinicius de Moraes e João Gilberto e o precursor ambientalismo, texto descreve como Tom e sua música permanecem símbolos poderosos da identidade brasileira.
Não é exagero afirmar que Antonio Carlos Jobim reinventou a música popular brasileira. Antes dele, ela se repartia entre as diversas expressões do samba, as serenatas, os gêneros regionais e as paixões melancólicas derivadas do bolero, às vezes embaladas em samba-canção.
Tom criou uma nova música brasileira, em que a tradição e as harmonias do jazz e da música erudita convivem com a batida suave de um tamborim minimalista, quase imaginário.
Ao falar de um criador dessa grandeza, costuma-se considerá-lo um divisor de águas. Tom, mais do que isso, é a confluência, o estuário onde deságuam todas as águas da música do Brasil. E embora tenha deixado o reino deste mundo há exatos 30 anos, sua música continua a nortear o presente e, provavelmente, ajudará a inventar o futuro. Como explicar a força de sua presença?
Os anos de estudo dos clássicos fizeram com que Tom conhecesse por dentro as harmonias de Ravel e Debussy. O trabalho como arranjador a serviço de gravadoras fez com que frequentasse os labirintos da música popular brasileira.
Além disso, como pianista na vida noturna carioca, período que ele chamava de "cubo de trevas", Tom aprendeu de cor os standards da música internacional. A soma dessas experiências levou-o a absorver uma espécie de antologia da música do mundo.
Na intimidade, ele gostava de mostrar ao piano conexões imprevistas. Por exemplo, fragmentos do impressionismo musical francês absorvidos pela canção brasileira, como na canção "Linda Flor", cuja harmonia é semelhante ao final da valsa "La Plus que Lente", de Debussy.
Também gostava de mencionar o "Prelúdio Número 4", de Chopin —que chamava, brincando, de "Insensatez", por conta das semelhanças entre a sua própria canção e a do compositor clássico. E costumava ouvir e estudar orquestrações complexas como as da "A Sagração da Primavera", de Stravinsky, um de seus ídolos, e do "Concerto em Sol", de Ravel.
Talvez caiba também mencionar a importância do acaso. A formação do Tom compositor aconteceu durante os anos dourados do samba-canção. Não por acaso, aliás, ele foi parceiro de Dolores Duran, uma das figuras mais notáveis do gênero.
E depois houve o encontro com a batida de João Gilberto e a poesia de Vinicius de Moraes. João trouxe para o violão uma síntese apolínea do samba. Já Vinicius trouxe para as palavras da música brasileira uma delicadeza e uma alegria que talvez só achassem precedente nas liras de séculos anteriores. Graças a esse duplo encontro, a música de Tom se tornou planetária.
Aqui faço um parêntese. Tom tinha paixão por literatura. Carlos Drummond de Andrade era seu poeta favorito, mas o encontro com Vinicius foi fundamental para sua formação artística.
Tudo começou com a peça "Orfeu da Conceição", escrita por Vinicius e levada aos palcos em 1956. O poeta chegara pouco antes da Europa, determinado a encenar o espetáculo com o dinheiro que poupara de seu salário de diplomata.
Estava em busca de um parceiro que compusesse as canções da peça. O destino reuniu Tom e Vinicius no bar Villarino, centro do Rio, onde o musicólogo Lúcio Rangel, o padrinho da parceria, fez as apresentações e propôs a Tom que criasse as músicas.
Tom perguntou: "Tem um dinheirinho nisso?". Lúcio Rangel ficou chocado, como se fosse uma ofensa falar em dinheiro diante da poesia, e rebateu: "Mas Tom, é o poeta Vinicius de Moraes!". Tom adorava repetir essa história, explicando entre sorrisos que sua pergunta era inevitável, porque, à época, ele vivia, segundo suas palavras, "competindo contra o aluguel".
Depois de algumas tentativas frustradas, a primeira canção finalizada pela dupla foi "Se Todos Fossem Iguais a Você". Alguns críticos reclamaram da mistura de tratamentos na letra, que começa na segunda pessoa, e diz: "Vai tua vida/ teu caminho é de paz e amor/ a tua vida/ é uma linda canção de amor...". Depois misturam-se o tu e o você, como no verso que dá título à música.
Vinicius respondeu às críticas: "Ninguém, a não ser as múmias da Academia Brasileira de Letras, diria à namorada: ‘Eu a amo.’ [Se disser assim] O máximo que obterá da namorada é o comentário: ‘Ele fala difícil...’ O que se fala no Brasil é: ‘Eu te amo. E você é a coisa mais bonita do mundo'".
Pena que Tom e Vinicius não tenham vivido mais alguns anos para serem mumificados na Academia. Tom chegou a pleitear uma vaga, anos mais tarde, mas retirou a candidatura em favor de seu amigo Antônio Callado. O mundo perdeu a oportunidade de vê-lo de fardão.
Tom e Vinicius compuseram a trilha de "Orfeu da Conceição", que estreou no Teatro Municipal do Rio, com elenco formado por atores negros. A peça deu origem ao filme "Orfeu Negro" (1959), produção francesa dirigida por Marcel Camus, que venceu o Festival de Cannes e recebeu o Oscar de melhor filme estrangeiro.
Não bastasse, o "carnaval macumba pra turista" do cineasta francês despertou as fantasias amatórias multiétnicas da mãe de Barack Obama. E Tom e Vinicius chegaram à Casa Branca.
Apesar de admirada pela maior parte de seus antecessores, a música de Tom provocou violenta aversão de críticos fundamentalistas, afrontados por suas harmonias refinadas e, talvez, pela repercussão universal de suas canções.
O mais feroz deles, à falta de argumentos sólidos, chegou a acusá-lo de sonegador de imposto de renda. Isto talvez tenha espicaçado em Tom o talento da ironia, em frases como "O Brasil não é para principiantes" e a mais sarcástica delas: "No Brasil, o sucesso é uma ofensa pessoal."
Mesmo com todas essas ressalvas, Tom jamais deixou de ser brasileiro até a medula, capaz de relativizar as benesses do exílio: "Lá [em Nova York] é bom, mas é uma merda; aqui [no Brasil], é uma merda, mas é bom". Não à toa, chamou uma de suas musicas de "Saudade do Brasil"
Ao longo do tempo, construiu uma obra cada vez mais complexa e variada. Encontrou em Chico Buarque um parceiro à sua altura. A primeira canção dos dois, "Retrato em Branco e Preto", já nasceu obra-prima. A teia de repetições da música sugeria uma espécie de labirinto harmônico-melódico.
Chico traduziu com precisão a estrutura musical em palavras que descrevem as voltas e revoltas de uma relação amorosa sem saída, que se arremata dizendo: "Vou colecionar mais um soneto / outro retrato em branco e preto / a maltratar meu coração."
Reza a lenda que Tom reclamou com o parceiro a inversão da fórmula habitual: "Não se diz retrato em branco e preto, mas retrato em preto e branco". E Chico, na lata, ofereceu a alternativa: "Vou colecionar mais um tamanco / outro retrato em preto e branco / a maltratar meu coração." Diz o dito popular que é melhor a emenda do que o soneto. Tom poderia reescrever o ditado: melhor o soneto do que o tamanco.
Uma vez por ano Tom engendrava uma espécie de dissertação, com a qual amparava entrevistas e conversas de botequim. Quando preparava seu álbum "Urubu" (1976), por exemplo, dissertava sobre as diversas espécies da família, entre as quais seu favorito era o jereba, a quem chamava de "o andorinhão das tormentas" —e fazia um gesto de quem bate as asas para ilustrar sua admiração pelos animais voadores, numa performance que fascinava a todos nós, gregos e baianos, nos restaurantes e bares da cidade, fosse na churrascaria Carreta, em Ipanema, ou na Plataforma, no Leblon.
E exibia seu repertório de nomes e pios de pássaros, para a alegria dos que partilhavam de sua mesa, entre os quais o escritor João Ubaldo Ribeiro, pescador amador, que em troca nos exibia nomes de peixes, num duelo entre os seres do ar e do mar.
Outro de seus temas favoritos era a tese de que a língua inglesa, ao contrário do que dizem os scholars, não passa de uma neolatina recheada de monossílabos druidas. Se você por acaso duvidasse da ideia, lá vinha um vasto repertório de argumentos. Ele se regozijava enumerando supostos furtos cometidos pelos britânicos.
Segundo sua hipótese, mesmo quando parecem inventar palavras —como por exemplo, "forgive"—, os anglo-saxões plagiam as formas neolatinas —no caso, teriam copiado a ideia do vocábulo "perdonar". Não importava que os eruditos na matéria afirmassem que a ideia era apenas uma excentricidade, Tom continuaria a colecionar exemplos de suas convicções translinguísticas.
Nos anos 1960 e 1970, Tom era um dos compositores mais executados no planeta, só perdia para Lennon & McCartney. No entanto, não foi muito feliz numa das manias da época: os festivais da canção.
Na primeira vez que participou deles, em 1968, com a música "Sabiá", conquistou o primeiro prêmio —e foi vaiado como Judas em sábado de Aleluia. A esmagadora maioria da plateia do Maracanãzinho queria a vitória de "Pra Não Dizer que Não Falei das Flores", de Geraldo Vandré, que se tornaria um hino contra a ditadura militar. Já na fase internacional do festival, Tom e seu parceiro Chico Buarque foram devidamente aplaudidos.
Três anos depois, em 1971, no apogeu da ditadura militar, nós, um grupo de compositores, resolvemos retirar as nossas músicas do Festival Internacional da Canção e fazer um manifesto para denunciar ao mundo a censura às artes no Brasil.
Adivinhe quem foi o primeiro signatário do manifesto e o primeiro a ser preso pela polícia política? Ele mesmo: Tom foi levado à sinistra sede do Dops, onde gerações de brasileiros foram aprisionadas e torturadas.
Por via das dúvidas, o maestro embarcou no camburão armado com uma flauta em sol, com a qual brindou os meganhas do Dops com um pequeno concerto solo.
Anos mais tarde, com a habitual ironia, comentou: "Fui várias vezes convidado, ou intimado, a prestar declarações. Sofri uma perseguição amena, bem diferente da que Chico, Caetano e Gil tiveram que aguentar. Mas acho muito incômodo ser preso, sobretudo num verão como o nosso. Resolvi parar de assinar qualquer papel".
Como muitos sabem, Tom já era ecologista numa época em que nem sabíamos o significado dessa palavra. Costumava falar das aventuras de sua juventude. Contava que Ipanema era um areal, que costumava atravessar a nado a Lagoa Rodrigo de Freiras.
A descrição nos parecia absurda, ou pelo menos hiperbólica. Hoje, observando as fotografias da cidade, vemos que a destruição foi rapidíssima. Gerações posteriores a dele viram, por exemplo, a Barra da Tijuca se transformar em depósito de lixo.
Certa vez o entrevistamos para a extinta TV Manchete, em 1984, no programa Bar Academia, e ele declarou: "Tenho pouca esperança de que o Brasil se recupere. A gente luta muito, mas parece que é uma batalha perdida. O que é que o homem quer? Cortar o mato. Escravizar a mulher. Matar o índio. Tacar fogo em tudo. A gente tem uma civilização do fogo. (...) Cozinha-se a terra toda, depois a chuva vem e não penetra".
Em entrevista anterior, foi ainda mais ácido: "Eu acho que os homens querem destruir o mundo, e que vão conseguir... No dia em que chover enxofre, vai virar Bíblia, não é? Pode ser que a civilização seja muito avançada. Mas faz muita fumaça. É uma fumaceira subindo [...] Então, é a lenha, botar o mar para baixo, matar os pássaros, e depois, quando não houver mais árvores, é botar fogo no capim —se é que ele vai pegar fogo". Profecia que parece prestes a se consumar.
Tom morreu em 8 de dezembro de 1994, em Nova York. O caminhão do Corpo de Bombeiros foi buscar seu corpo no aeroporto do Galeão, que passou a se chamar Tom Jobim, embora ele não gostasse de aeroporto nem de avião.
Aliás, por medo de avião, chegou a voltar duas vezes dos Estados Unidos de navio, sob o pretexto de que devia acompanhar a viagem de um novo piano. Costumava também voltar de São Paulo de trem.
O dia da chegada do corpo de Tom foi dos mais tristes da história do nosso balneário. O velório ocorreu no Jardim Botânico, onde há hoje um recanto em sua homenagem e um teatro com seu nome.
Em um rasgo de otimismo metafísico, Guimarães Rosa escreveu que as pessoas não morrem, ficam encantadas. Tom encarna à perfeição a frase do Rosa: há tantos lugares como que imantados pela sua presença física —as farmácias, padarias e a Cobal do Leblon.
Sem falar na presença poética: não há como viver uma grande paixão sem pensar em suas canções de amor; nem há como passear pela Floresta da Tijuca sem pensar em suas canções sobre a natureza.
A cidade está toda tatuada por sua música e sua poesia. O consolo é saber que ele continuará pairando sobre o Rio de Janeiro, e que, ao regressarmos à cidade, tendo ao fundo o "Samba do Avião", sempre nos sentiremos tão felizes quanto Ulisses regressando à sua ilha.