Esta vida de saltimbanco das letras às vezes me dá uns sustos. Antigamente, escritor só precisava escrever. Hoje, suspeito que as editoras, em breve, passarão a exigir dele diplomas de marketing, habilidades de vendedor e proficiência em conferências e entrevistas. Some-se a isso a apregoada morte dos direitos autorais e poderão vir aí aulas de canto, dança, sapateado, piadas, violão, piano, mágica, leitura de bola de cristal e o que mais possa entreter uma plateia exigente, a ponto de ela aceitar pagar para ver o escritor. Foi o que sugeriu um advogado da abolição dos direitos autorais. Indagado como os escritores iriam sobreviver sem remuneração, o reformista retrucou, com um certo desdém por lhe haver sido feita indagação tão destituída de importância, que eles poderiam sustentar-se por meio de aparições públicas, em shows, espetáculos e o que mais lhes parecesse poder render uns trocados. Com os livros pirateados de todas as formas, desde xerox até cópias baixadas gratuitamente da internet, se tornará comum um livro ser lido por milhões de pessoas, e vender em um ano uns 80 exemplares, de maneira que, para defender a verba do supermercado, é melhor que o escritor se adapte aos novos tempos.
Creio que o grande público se aliará a essas mudanças, porque se sabe que, na opinião mais corrente, os escritores não trabalham. Discam um 0-800 da vida, cujo número completo não revelam nem sob tortura, que lhes fornece um canal inspirador, o qual eles só fazem escutar e transcrever, para depois algum infeliz revisar e publicar. Além disso, como se lê sempre nos jornais, vendem suas garatujas para Hollywood e ganham US$ 10 milhões com o primeiro livro, passando então a viver como a gente também vê em filmes americanos, ou seja dormindo com nove em cada dez estrelas de cinema, promovendo bacanais, acendendo charutos com notas de mil euros e fretando aviões para levar os amigos a uma tourada em Madri e esticar no mesmo dia, para um bistrô de outro amigo em Paris, onde cada um receberá de brinde uma trufa branca de R$ 10 mil o quilo, com a farra terminando somente no dia em que o escritor precisar de mais US$ 10 milhões e passar uma semana ocupado na preparação de novo sucesso hollywoodiano.
Para os que ainda não pegaram o dinheiro de Hollywood, a rotina deverá ser menos opulenta, mas não obstante atraente. Os editores se transformarão em empresários de espetáculos e os escritores terão um sem-número de vias para defender a graninha do supermercado e já posso ver os cartazes, em teatros, auditórios, circos, escolas e onde quer que haja espaço para a literatura. O romancista e sua harpa paraguaia, com a participação de Los Guaranis de Mossoró! O contista lerá de graça as mãos de quem comprar um livro (comprando três, o leitor terá direito a quiromancia para toda a família)! Hoje, sensacional strip-tease de três poetisas na Livraria Fuzarca, entrada franca para quem declamar de cor uma quadrinha de uma delas!
Vivendo entre essas perspectivas, que às vezes são levemente inquietantes, é natural que eu ontem tenha tomado um dos sustos a que me referi. Acordei cedo e demorei bastante para entender por que a cama me parecia diferente e a paisagem pela janela também. Só muito gradualmente fui lembrando que não estou no Rio, mas em Londres. Que é que eu vim fazer em Londres, meu Deus do céu? Num lento esforço de reportagem tentei voltar gradualmente à realidade. Vasculhei a mente. Não podia ser a demonstração de capoeira, fui reprovado no exame final e tenho de fazer cinco anos de reciclagem. E Canetinha e Lapiseira, a dupla sertaneja que pretendo integrar, com um parceiro cujo nome o contrato ainda não permite divulgar, mas vai ser uma bomba, ainda está nos acertos preliminares. Mas Londres?
Na mesa de cabeceira, um lembrete escrito me deu novo susto. Um amigo meu que mora em Londres ia passar daí a pouco, para me levar a Covent Garden. Covent Garden, onde os artistas de rua tradicionalmente fazem seus exibições, para depois passar o chapéu entre os espectadores. A idade opera misérias e, pelo visto, me haviam designado para uma demonstração de xaxado enquanto tentariam empurrar meus livros e, falhando isto, recorreriam ao chapéu, começo de carreira é isso mesmo, não se pode rejeitar nada.
Mas, por não ter trazido as alpercatas e o chapéu de cangaceiro, fiquei preocupado com um fiasco e telefonei para o amigo. Ele logo me tranquilizou. Que é isso, nada disso, eu tinha vindo fazer uma palestra, ainda não cheguei ao estrelato do xaxado. E a palestra ainda estava no estágio de abotoar os passantes e oferecer uma caipirinha grátis a quem topasse comparecer, isso era trabalho para os promoters. Por enquanto íamos somente dar umas voltas pelo centro e apreciar algumas das muitas comemorações de rua com que os ingleses marcavam os 60 anos de reinado de Elizabeth II.
Logo estávamos circulando, as ruas fervilhando, tudo fervilhando. Andando à toa, chegamos ao Palácio de Buckingham e paramos em frente. Desde a rainha Victoria, ele estava ali, quanta história tinha visto, de quantos momentos célebres tinha sido testemunha, quantos pronunciamentos momentosos lá tinham sido feitos! É, respondeu meu amigo, e o Brasil faz parte. Como assim, alguma frase brasileira ecoava naquelas paredes veneráveis? Claro, disse ele, o presidente Lula ficou hospedado aqui, se emocionou e fez seu comentário histórico. Verdade, que comentário ele fez?
- Ah, ele declarou que, poucos anos antes, ninguém ia acreditar que ele estaria ali, fazendo coco no banheiro da rainha. Mas esse povo é muito preconceituoso, acho que ninguém botou a declaração brasileira no acervo do palácio.
O Globo, 10/6/2012