Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Miguel Torga, a voz do chão

Miguel Torga, a voz do chão

 

Este foi o título dado ao escritor português Miguel Torga (1907-1995), cujo centenário de nascimento estamos comemorando. Disseram-no intérprete do próprio chão em que nascera. Mas Torga teve também uma forte influência brasileira, pois viveu em Leopoldina, Zona da Mata mineira, dos 12 aos 18 anos, e ali escreveu os primeiros poemas, inspirados em Casimiro de Abreu.


Nascido Adolfo Correia da Rocha, resolveu escrever sob um pseudônimo forte. Escolheu Miguel, prenome tradicional português, ao qual juntou o Torga, que a vem a ser a raiz de uma urze com a qual se faz carvão. Mas tal só aconteceria bem mais tarde. Antes, veio trabalhar para o tio que tinha uma fazenda, em Leopoldina, onde passou a cuidar de porcos, de bois, da plantação de café e se encarregava mesmo de caçar e matar cobras que atacassem o gado ou mesmo pessoas.


O tio percebeu que o menino tinha uma inteligência rara, resolveu inscrevê-lo num curso secundário local, onde ele se destacou e começou a escrever poesia. De volta a Portugal, o tio financia-lhe os estudos em Coimbra, onde se formou em Medicina e deu início à carreira de escritor. Escreveu perto de 80 livros. Contos, romances, poesia, teatro, ensaios, só de "Diários" publicou 16 volumes. Quando se instituiu o Prêmio Camões, foi ele o primeiro a ganhá-lo.


Com ele estive em Coimbra, onde falamos sobre o Brasil. Disse-me que, na Mata mineira, descobriu a poesia. E o cinema. À sua aldeia transmontana ainda não havia chegado o cinema. Em Leopoldina e em outras cidades da Mata - Ubá, Cataguazes - pôde conhecer os dois mitos opostos do século XX: Carlitos e Tarzã. Mas, acrescentou, para ser o escritor que ele queria ser, tinha que voltar a Portugal. Escrevendo mais tarde sobre sua presença no Brasil, disse: "Um de meus títulos de glória foi ter passado a adolescência no Brasil. O Brasil, amei-o eu sempre, foi o meu segundo berço, sinto-o na memória, trago-o no pensamento."


Começou a colaborar na revista "Presença", em que também escreviam escritores não portugueses, inclusive brasileiros: James Joyce, Anton Tchecov, Henri Bérgson, Fiodór Dostoievski, Cecília Meirelles, Ribeiro Couto. Participou depois de outra revista, "Sinal". De vez em quando, tinha lembranças do tempo em que era "moleque de terreiro" na imensa fazenda de Santa Cruz (em cujo interior operavam até duas estações da estrada de ferro local).


Lembrava-se das inúmeras vezes que ia ao pasto buscar os cavalos da cocheira, limpá-los e arreá-los, rachar lenha, varrer o pátio. Tinha ainda de atender à freguesia que ia comprar fumo, cachaça, carne-seca, feijão ou trocar grão por fubá. Tinha de fazer a escrita da fazenda e verificar à noite se as portas e janelas estavam bem fechadas.


Por muito trabalhoso haja sido aquele passado, lembrava também do tempo que passou fazendo o ginásio, o gosto que li passou a ter pelo idioma português e os livros que leu e comentou durante seu período em Minas Gerais. Com 16 anos, lia tudo quanto lhe chegava às mãos e sabia de cor a biografia de todos os autores que havia na seleta. E essa luta pelo conhecimento ficou ligada à "pequena cidade cheia de sol", a Leopoldina em que começou a escrever, a Leopoldina que celebra, neste fim de 2007, o centenário de nascimento de Miguel Torga.


As comemorações do centenário de Miguel Torga em Leopoldina começarão na próxima quinta-feira, às 19h30, no Cefet, em mesa-redonda de que participarão Marcos Roberto Teixeira de Andrade, mestre em Teoria da Literatura da Universidade Federal de Juiz de Fora, Marcos Vinícius Ferreira de Oliveira, mestre em Estudos Literários d Universidade Federal do Espírito Santo, e Begma Tavares Barbosa, doutora em Lingüística pela PUC do Rio de Janeiro. Haverá também a exposição itinerante "Miguel Torga e Leopoldina", com banners sobre a vida e a obra do escritor, complementando com oficinas literárias no dia 23.


No dia 5 de dezembro, estará o autor destas linhas fazendo uma conferência em Leopoldina, no contexto das comemorações. Falarei então dos encontros que Jorge Amado e Antonio Olinto tivemos com Torga em Portugal.


Tribuna da Imprensa (RJ) 20/11/2007

Tribuna da Imprensa (RJ), 20/11/2007