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Menos poético e romântico

 

Minha curiosidade por essas viagens siderais não tem nenhuma transcendência, é prosaicamente terrena: o que eu quero saber é como eles vencem o tédio

Apesar do estado em que se encontra o país, por pior que esteja a Terra, e mesmo que seja cada vez maior o risco de ela ser “destruída por um desastre”, como prevê o grande físico Stephen Hawking, não pretendo deixá-la, nem por 340 dias, como os dois astronautas que acabam de voltar do espaço. Não entendo que, segundo as notícias, cem mil pessoas já tenham se inscrito para uma viagem a Marte e, pior, com passagens apenas de ida, pois os escolhidos terão que morar lá não se sabe por quanto tempo para iniciar a colonização do inóspito Planeta Vermelho. Uma das escolhidas é uma americana de 36 anos, casada e mãe de dois adolescentes. Na foto com a família, parece contente em estar onde está. O que será que a motivou a ir embora? Tive vontade de lhe mandar um e-mail dizendo que, se é por gosto de aventura em deserto, tenho uma sugestão melhor: o Jalapão, no Tocantins. É muito mais interessante, com cachoeiras, lagos cristalinos, dunas brancas e paisagens deslumbrantes.

Minha curiosidade por essas viagens siderais não tem nenhuma transcendência, é prosaicamente terrena: o que eu quero saber é como eles vencem o tédio do dia a dia trancados numa estação claustrofóbica, flutuando o dia inteiro sem pisar no chão, como satisfazer as necessidades humanas, como fazer para, por exemplo, para... eu estava especulando, quando Alice entrou na conversa para me esclarecer que os astronautas fazem cocô presos à privada com um cinturão e dormem amarrados numa cama presa à parede. Aos 6 anos, tendo visto os sete filmes “Star Wars” e com livros bem ilustrados em sua pequena biblioteca, minha neta é íntima do mundo extraterreno que só nos foi mostrado quando o homem pisou na Lua, em 1969, realizando o então mais audacioso feito da corrida espacial e uma de suas mais antigas fantasias.

Foi meio decepcionante o que encontraram naquele corpo celeste feminino que inspirou tantos poetas e seresteiros com sua nostálgica palidez e suas misteriosas quatro fases: cheia, minguante, nova, crescente. Ao chegar, Neil Armstrong pronunciou uma frase lapidar que deve ter sido levada pronta: “Um pequeno passo para o homem, um grande salto para a humanidade”. Mas ao pessoal da base na Terra ele confessou que estava pisando uma espécie de “poeira de carvão que adere à sola e aos lados das minhas botas”. A Lua deixava de ser dos namorados, como cantava a velha marchinha carnavalesca, que ainda avisava: “Querem te roubar a paz (...) /Não deixa ninguém te pisar”.

A geração de Alice é precoce, muito sabida, tem mais informação, mas o mundo que lhe está sendo oferecido é menos poético, menos romântico.

O Globo, 05/03/2016