A exposição comemorativa pelos cinqüenta e três anos de posse de Josué Montello, "Memória literária de Josué Montello", inaugurada agora na Academia Brasileira de Letras e que ficará até 30 de maio, no Centro de Memória da Casa, vem fazer justiça a um escritor que viveu tempo integral de dedicação à literatura, à cultura brasileira e ao livro. Além de ter deixado alguns dos melhores romances, ensaios e obras de conteúdo histórico, foi também um lutador em prol de um cada vez melhor sistema de educação no país.
Acompanhei o sucesso de seu romance "Os tambores de São Luís" em suas traduções francesa e inglesa e presenciei seu trabalho na Unesco, onde representou, em atividade profícua, a cultura brasileira e vi de perto seu trabalho na Academia Brasileira de Letras, de que foi presidente.
Revendo agora sua obra, chamo a atenção para um de seus primeiros romances, "A décima noite". Os grandes problemas de um país ou de um homem não têm lugar no seu esquema. E, contudo, exatamente por isto, em "A décima noite" estão os grandes problemas de um país ou de um homem. Por não ter abandonado os seus limites - mas, ao contrário por mergulhar nos pormenores ilimitados que esses limites continham - consegue Josué Montello infundir, em cada acontecimento particular de seu romance, o signo do trecho bem acabado que, ligado às outras partes da narrativa, compõe um todo inconsútil.
Todos os personagens de "A décima noite" movem-se como figuras de fundo para os principais: Abelardo e Sinhazinha, de um lado; Alaíde e Dr. Paiva, do outro. Mesmo assim, Sinhazinha existe apenas na memória. Armado o esquema, pode Josué Montello tirar o máximo de sua gente. Numa concentração proustiana de personagens, Abelardo assume o papel semi-onisciente de Swan, enquanto os outros dois formam o campo oposto, inesperado e imprevisível. Poucos romances brasileiros dos últimos anos têm o sentido de suspense de "A décima noite". Depois do casamento, à medida em que a décima noite se aproxima, a narrativa se concentra nas perguntas que ocorre em todo inesperado: que será? por que? como?
Só depois do desaparecimento do Dr. Paiva consente o romancista em levar suas situações a uma calmaria e a chave da história acaba sendo o momento em que, quase no fim, Abelardo chama Alaíde de "minha filha". Mesmo aí, porém, com a solução do problema já estabelecida, resolve Josué Montello dar um polimento final à psicologia dos personagens. Então só restam dois: Abelardo e Alaíde. Se Josué Montello fosse apenas tradicionalista e não tivesse nada de novo em sua novelística - o "happy end" seria o fim de um mundo particular, mas a substância de sua história resvala para além do fim e o romance não perde a sua força na hora em que a solução do conflito deixou de ter interesse.
O "happy end" de "A décima noite" assemelha-se aos de grandes romancistas ingleses do nosso século (o de E. M. Forster, em "Howards end", o de Joyce Cary, em "A fearful joy"), em que, depois do fim, sempre resta muita coisa. Perto de Forster estaria Josué Montello pelo seu sentido de enredo e pelo modo como liga os fios de uma narrativa. Mesmo dando sua atenção principal a poucos personagens, não deixa o romancista de desenhar com precisão os demais.
Lucíola, o caseiro do Anil, Madame Fleury, Tavares, Emiliano, destacam-se com nitidez, tanto em simples presenças como em diálogos. Sendo minucioso, espalha Josué Montello sua gente pela paisagem do romance, para erguer, com eles, um tempo e um lugar. E a cidade de São Luís, em que decorre toda a ação da história, não se firma no livro apenas em passagens descritivas ao gosto do antigo paisagismo literário, mas também, e principalmente, no clima psicológico elaborado pelo romancista.
O romance de Josué Montello, "A décima noite", é uma prova de permanência do novo dentro do antigo. Em princípio, tomadas separadamente as partes dessa narrativa, que haverá de renovador no livro? Pouca coisa. Contudo, no conjunto, a história dobra-se sobre si mesma, em inesperados volteios, através de densas e coesas camadas de decorrer dramático.
Que recursos utilizou Josué Montello para obter esse resultado? Em primeiro lugar, o instrumento foi mais interno do que externo. Explico: Josué Montello acreditou que, num romance, o importante é contar uma história, E contou-a ponto por ponto, trecho por trecho, pensamento por pensamento, diálogo por diálogo, gesto por gesto. Não teve medo dos desvios que qualquer caso comporta. Fechou sua narrativa em tecidos compactos, sem uma brecha sem um desvão. Atingiu, com isto, um estado de supertradicionalismo. E, no paradoxo que só causa estranheza aos que não crêem na vitalidade da obra de arte, tornou-se novo.
Tribuna da Imprensa (RJ) 22/4/2008