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A maldade de cada um

 

Diante da constatação de que há uma ‘cultura do estupro’ no país, é preciso também combater o que contribui indiretamente para essa patologia social.

O estupro coletivo da jovem de 16 anos no Rio provocou uma onda de indignação que se fez acompanhar de diversas reações, inclusive do governador interino, Francisco Dornelles, que aplicaria a pena de morte aos culpados, se dependesse dele. Mas, em vez do que nem existe aqui, o melhor foi o Senado aprovar o projeto que aumenta a punição desse crime para até 25 anos de prisão. A exemplo da corrupção, o estupro prolifera por causa da impunidade num país em que se registra um caso a cada 11 minutos. Li apelos para que as mães ensinem seus filhos a respeitar e valorizar a mulher. Tudo bem, mas é preciso que eles aprendam também em casa e na escola que têm de pagar pelos erros. O suspeito que, apesar de ter feito o vídeo para a internet, chegou à delegacia rindo e comemorando a súbita celebridade (“Estou mais famoso que a Dilma”, disse para o colega), voltou depois algemado e agora sem achar a menor graça e se dizendo arrependido do deboche. Ali já estava a delegada Cristina Bento, desfazendo a dúvida lançada pelo seu antecessor afastado de que, talvez, não tivesse havido o estupro, uma versão usada pelos traficantes para uma passeata com cartazes anunciando que o que houve foi “orgia”. O fato de que o laudo não constatara violência sexual na vítima poderia se dever, segundo a perita, ao atraso do exame. Vendo as cenas gravadas, a delegada não hesitou: “Minha convicção é que houve estupro”. Só não sabia a “extensão: “se foram cinco, dez, 30” os criminosos.

Por outro lado, diante da constatação de que há uma “cultura do estupro” no país, é preciso também combater o que contribui indiretamente para essa patologia social, como a piadinha machista, o humor preconceituoso, o assédio na forma de cantada. O sexismo no Brasil é cultivado até em festas e trotes universitários. Para citar apenas um exemplo. O “InterUFG16”, jogos esportivos da Universidade de Goiás, divulgou há pouco um “regulamento” estabelecendo um ranking para cada tipo de mulher que os alunos “pegassem” durante o evento. Se fosse “gostosa e gata”, ganharia oito pontos. Se fosse “pretinha bonitinha”, receberia dois pontos. Perderia um ponto se beijasse uma “mulher gorda” ou “preta e feia”. Toda essa apologia da boçalidade ocorreu num estabelecimento de ensino superior, onde se forma a elite intelectual do país e onde também se aprende a tratar a mulher como coisa descartável.

Por tudo isso, ouso discordar da tese do filósofo Jean-Jacques Rousseau de que o homem nasce bom e é corrompido pela sociedade. Crimes hediondos como esse demonstram que há uma maldade congênita, que nasce com uns e, felizmente, não com outros da mesma sociedade.

O Globo, 01/06/2016