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A límpida voz do poeta

 

Num "trabalho em progresso", exerce Guilherme de Almeida, desde seus primeiros versos, uma função de unificador de relações e de semelhanças. Seu pensamento poético funciona com rapidez no associar parecenças, com a faculdade de descobrir "estranhas combinações nas coisas comuns". A relação é uma ordem entre diferenças, mas pode ser também um grito.


Antes de a palavra se formar como representação do pensamento e da sensação, há um tempo interno que liga os elementos ontológicos que tentam ser comunicação. O domínio que o poeta de "A dança das horas" foi adquirindo sobre as palavras - ele foi, especificamente, um poeta verbal - se tornou maleável e modificável, ao ponto de não se deter num só modus por mais de um ou dois livros, insistindo em se modificar no seguinte, em ser diferente do que fora, em se renovar.


Trabalhando sobre a mesmice das palavras, consegue realizar aquilo que Michel Foucault assinala como função da linguagem feita verbo: "É no verbo que a linguagem está mais próxima do ser, e é mais capaz de o nomear, de transmitir ou de fazer funcionar seu sentido fundamental, de o tornar absolutamente manifesto".


Um gramático do século XVIII, no estilo comparativo da época, definia os substantivos como sendo formas, os adjetivos como cores, e o verbo como a tela sobre a qual substantivos e adjetivos aparecem. O uso dos verbos é, em Guilherme de Almeida, mais ou menos nessa direção, com um extraordinário sentido espacial do poema.


A conjunção de mestria vocabular com o bom aproveitamento do espaço, já antes da Semana chamava a atenção de Alceu Amoroso Lima, que nele distinguiu o primeiro moderno. Já revelava, aí, o gosto pelo jogo de sons que seria uma das marcas da poesia brasileira meio século depois da estréia do poeta de Nós.


Tanto nos poemas de "Simplicidade" como nos de "Suave colheita", havia um modo poético separado de parnasianismos e simbolismos. Como neste começo de "O último soneto": "Vivi. Quando cheguei, trazia os olhos cheios /da saudade de um céu que foi meu mundo antigo. / A vida me fez mau. E os homens, por castigo, / odiaram-me. E eu também, porque eram maus, odiei-os. // Sofri. Tudo o que tive - ideais, sonhos, anseios / naufragou numa pobre lágrima ... E, comigo, / mais de um homem chorou, mais de um me disse: "Amigo!" / A dor tornou-nos bons: perdoaram-me, perdoei-os..."


No desenvolver de toda sua obra, Guilherme de Almeida, embora modernista e revolucionário, não se prendeu a escolas e correntes. Fez questão de defender a sua solidão, certo de que, na literatura como em tudo o mais, só uma coisa é indestrutível: o trabalho - na convicção de que, antes do artesanato - antes mesmo da possibilidade de haver um problema de pura técnica - deve o lado moral do avanço ser resolvido.


É capaz, a escola literária, de ter uma função disciplinadora, até mesmo encaminhadora, desde que compreendida com realismo. Porque mais importante do que ela é o autor, e este deve abandoná-la em prazo útil, a fim de seguir sozinho. No fundo, porém, a solidão assusta. Faz medo. E o poeta, se não tiver coragem de ser o que é, pode acabar no vazio. A escola, não, esta protege. É normal que os componentes de determinada idéia estética - ou de um grupo, de uma geração - se defendam mutuamente. Quem está do lado da tese é sempre ótimo. Quem não deve ser atacado. Os adeptos de uma escola passam então a achar insuperáveis os poetas de seu grupo; e superados, os que a ele não pertençam.


No decorrer dos anos da revolução literária brasileira, houve muitas teses. O que foi bom - não é preciso que se repita porque literatura precisa de duas coisas: insubmissão e renovação. Mas a obediência a grupos acaba sendo submissão. Do ponto de vista geral, a seita pode provocar um salto para frente, embora, vista do ângulo de quem procura criar uma obra, seja um empecilho. O grande artista é sempre um participante e um solitário.


Como participante e solitário costuma ser o poeta que ama seu lugar e seu tempo, mas não se desprende de sua condição de combatente em favor do progresso de uma feitura, de uma conquista de liberdade e do dever de se realizar, de atingir a plenitude de si mesmo. Porque fazer poesia é também um modo de ir além dos limites que as formas, as fôrmas e as fórmulas nos impõem.


Sai agora, a segunda edição do livro "Sonetos de Guilherme de Almeida", lançado pela Academia Brasileira de Letras em parceria com a Academia Paulista de Letras e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: é livro de um poeta de voz limpa que paira acima da linguagem poética do Brasil.


Tribuna da Imprensa (RJ) 21/10/2008

Tribuna da Imprensa (RJ), 21/10/2008