A Academia da Latinidade vem de concluir em Ancara e Istambul o XI Simpósio sobre a interrogação, ainda, das diferenças culturais no seio de um mundo ameaçado pela configuração hegemônica. Trata-se de buscar uma interlocução, em que esse Ocidente flexível, mediterrâneo, vindo de uma tradição pluralista, confronte a dureza crescente do fundamentalismo nascido do Salão Oval. Ou da determinação da cruzada, decretada a partir dos restos fumegantes da queda das torres de Manhattam, como revide à deflagração da ameaça difusa e pertinaz de um terrorismo sem quartel.
A Academia reúne expressões do pensamento francês, espanhol, português, rumeno latino-americano e italiano. Congrega pensadores como Jean Baudrillard, Edgar Morin, Alain Touraine, Gianni Vattimo, Federico Mayor, Sergio Paulo Rouanet ou Helio Jaguaribe. Transformou-se numa primeira resposta ao apelo de Khatami para que um "diálogo das civilizações", esvaziado dos seus estereótipos interrogasse a "civilização do medo" nascida do 11 de setembro. A Academia, nesse qüinqüênio, peregrinou entre as pontas dessa conversação, concentrando-se no diálogo com o Islão. E o fez em todos os seus quadrantes, a partir de Teerã, continuando em Alexandria e agora fechando este "vis-à-vis" na interlocução turca. A ida sistemática ao outro lado teve sempre o retorno aos focos do Ocidente, nos encontros de Paris, Rio de Janeiro, Lisboa ou Nova York. Impunha-se o desarme da suspeição recíproca começada pela possível desconstrução destes universos mentais, tangidos para o fundamentalismo. Dialogou-se com o mundo iraniano, tal como frente ao árabe, e na esteira do Império Otomano, com a experiência da modernização de Ataturk, criando um Estado laico no próprio seio da cultura islâmica, assentada numa história européia comum, que agora reclama o seu reconhecimento. entre os blocos internacionais do nosso tempo.
A latinidade depara em Istambul, como a segunda Roma, no curso destes dois milênios, o rateio natural do anfiteatro mediterrâneo, onde não se enraízam apenas as matrizes da torna do Ocidente ao mundo clássico pela via árabe, na emergência do Renascimento. Nesta interlocução, tanto a Turquia encontra mais facilmente a modernidade, quanto o Ocidente o legado da romanitas; do Estado respeitador do multiculturalismo, e das diferenças na sociedade subjacente aos impérios. Mais do que nunca é este o cenário mundial que pode resistir à modernidade engolfada pela nova hegemonia americana, na imposição universal do que entende pelos modelos e valores de nosso tempo. A cruzada bushiana quer fazê-los prevalecer fora da vivencia de cada realidade, como efetivamente requer o respeito às culturas e seu dialogo. É o que, na visão de Baudrillard, importa em transformar estes universais em simulacros, em fetiches frente ao verdadeiro conteúdo em que ganham vigência e suporte.
Uma reunião na Turquia é inseparável do debate do que seja o seu impacto no sustento da União Européia em contraponto ao Ocidente duro de Washington. Não no sentido de um mero equilíbrio geopolítico tradicional, mas no avanço de um conceito aprofundado de avanço de uma consciência cívica, por sobre o mundo, apenas, de nações. Esta emergência de novos protagonismos internacionais se dissocia dos marcos geográficos clássicos, para reconhecer uma comunidade de história, em que a modernidade européia não se dissocia do Império Otomano nas suas sucessivas expressões de dominação. A Velha Europa fez-se de confrontações, reconhecimentos, identidades que vencem as fronteiras continentais para abarcar todo o lago Mediterrâneo, da Turquia ao Mahgreb, Norte africano.
A Conferência de Istambul mostrou, por outro lado, como, da Anatólia de Ataturk avulta um senso de afinidade, a percorrer o mundo eurasiano como um rastilho sobre as antigas Repúblicas Soviéticas na região. Um impulso de recuperação de suas raízes culturais vem de par com o ganho de sua reivindicação do Estado nacional, sufocado pelo socialismo stalinista. Estados como o Uzbequistão, o Quirguistão, Turcomenistão, tem, cada vez mais, na Turquia, a alternativa à velha dominação de Moscou. Reconhecem-se nessa mesma onda histórica, em que o governo de Ancara, saindo do Império Otomano os precedeu em 3/4 de século. Tanto quanto, por outro lado, o país de Ataturk aumenta ainda essa parentela com os eurasianos, enquanto hoje reduz o laicismo extremo da Revolução de 26. O governo de Erdogan não esconde esta retomada das matrizes religiosas sufocadas pela modernização à outrance de Mustafá Kemal.
Toda a interpelação da latinidade nem sequer garante a resistência do multiculturalismo reptado pela cruzada do Salão Oval. E é, pois, na seqüência da reunião de Ancara e Istambul que a Academia vai a Samarcanda em abril de 2006 criar uma interlocução com estes vastos espaços, na sua afirmação identitária, antes de que a ameaça das culturas confronte uma luta de guerrilhas pela diferença. O colóquio mostrou como a Turquia de hoje está consciente de seu caráter quase arbitral no fazer a diferença nos velhos jogos do peso internacional europeu. Entendem-se os riscos e, também, a mudança qualitativa que representará, em bem de um mundo genuinamente plural, a integração, neste bloco, de uma nação de 75 milhões de habitantes e plataforma de uma alternativa identitária para o acordar eurasiano. E mais se reforça esta perspectiva enquanto a União Européia corre o risco de voltar ao integrismo cristão, recusado até agora pela sua Constituição. É o que se vê das antigas declarações do Cardeal Ratzinger, de recusa ao ingresso turco em bem das uniformidades culturais a desimpedir mais facilmente o avanço das identidades hegemônicas.
Não passou despercebido à Conferência da Turquia o rasgo novo de Lula, juntando, pela primeira vez na América Latina, o conjunto de nações árabes neste apelo às reuniões de identidades, para além das fatalidades geográficas. Uma latinidade pertinaz que hoje se escora, inclusive, neste acordar de clamores como o do Brasil, por fora dos seus alinhamentos tradicionais, só tem a aumentar os seus trunfos nas cartas a serem jogadas diante da hegemonia plebiscitada nas urnas pelo segundo governo Bush. Às ideologias fáceis de um "mundo só" se replica pela prática pertinaz da diferença e do multiculturalismo, para garantir a retomada concreta de uma "cultura da paz", escapada à vala do fundamentalismo, cavada pela queda, em câmara lenta, inestancável, das torres do World Trade Center.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 29/04/2005