Escrevi esse título aí sem pensar em nada além de aproveitar a célebre ária do Rigoletto para o assunto sobre o qual acho que vou escrever hoje. Não vejam nesta incerteza, queridos leitores, irresponsabilidade, leviandade ou escassez de disciplina profissional. É que, pelo menos para certos escritores, assunto é assim: o sujeito pensa que escolheu um, mas logo outro se intromete, toma a frente e às vezes cria situações difíceis. Em todos os romances que escrevo, sempre há algum personagem que eu quero matar e ele não morre, alguém que eu quero casar e ele se recusa. Com assunto é a mesma coisa e receio que algo do gênero está acontecendo no momento.
Sim, porque eu ia (ou ainda vou, quem sabe) escrever sobre como a ciência, de um certo ponto de vista, parece mais volúvel que a mulher retratada na ária. Aí, viva meu anjo da guarda, me ocorreu que enfrentamos tempos perigosos, há ciladas por toda parte. Talvez vocês nem tenham pressentido, mas vejam a fria em que eu ia entrar. Ia atribuir um aspecto, digamos, negativo da ciência à semelhança desta com a mulher. Não sacaram, não? Eu ia desmerecer a ciência usando a figura da mulher, ou seja, Deus me defenda, fazer da condição de mulher um insulto. Isso é do tempo em que os guerreiros gregos, no cerco de Troia, menosprezavam seus companheiros, chamando-os de "mulheres acaias", coisa de mais de dois mil anos atrás, vá ser atrasado assim na Coroa do Limo, lá na ilha.
Como pude quase cair nessa? Choveriam cartas e e-mails inflamados, talvez artigos de protesto, me acusando de misoginia, machismo, sexismo, heterofobia e talvez até assédio sexual, sei lá, também está na moda. E não duvido nada que já exista alguém do Ministério Público tocaiando o primeiro infeliz que entre nessa esparrela. Não pude sopitar um calafrio, mas logo me recuperei do choque e descortinei atrás dele todo um novo horizonte. Meus olhos se abriram para o mal que nos acomete de todos os lados, a ponto de não sabermos mais por onde começarmos a nos defender.
Lembrei a ária que motivou este palavrório todo. Não a sei de cor, mas já a ouvi e li a letra várias vezes, assim como muitos de vocês. E quem quiser pode pegá-la no Google, a erudição ao alcance de todos. E escandalizar-se, meus caros amigos, escandalizar-se! Faz praticamente dois séculos que essa ária está aí e ninguém se deu conta! Meu caso é típico, só fui notar agora, por feliz coincidência. Como se pode permitir que palavras tão depreciativas, tão desdenhosas, tão agressivas, tão cheias de ódio disfarçado em sarcasmo, tão criminosas mesmo, sejam proferidas - e de forma tão glorificada, cantadas por um grande tenor e obra de um dos mais consagrados compositores da História? É esse o retrato da mulher que se quer ver perpetuado? No momento em que tantas nações importantes são lideradas por mulheres, inclusive a nossa, não se faz nada para impedir a renitência do preconceito, e através de uma das vias mais importantes para a consciência humana, que é a arte?
A arte, parafraseando alguém aí (vejam no Google), é importante demais para ser deixada na mão dos artistas. E o pensamento, mais ainda, é importante demais para ser deixado na mão dos que pensam. Isso vem ficando cada vez mais claro e acho até que ocupamos um lugar de destaque no mundo. Assistimos, aqui no Brasil, a um episódio recente, envolvendo problemas raciais numa obra de Monteiro Lobato. Não sei em que é que deu, mas lembro que se favorecia a "contextualização" do romance. Isso nada mais é que tutelar a leitura, ou seja, ensinar como ela deve ser apreendida ou compreendida. "Onde você está lendo 'isso', não é bem 'isso'." Vá lá que não se reescreva o texto original, para adequá-lo à nossa época e a nossos valores, evitando ainda o risco de ver ressuscitados conceitos nocivos e cientificamente inaceitáveis, mas pelo menos baixemos normas para seu correto entendimento.
Não vejo como escapar disso, na construção da sociedade perfeita que almejam para nós, o mais possível fundada em inatacáveis, porque reais e inalteráveis, verdades científicas. Sei que é difícil, mas não custa sonhar. E é passo a passo que se chega ao objetivo, nenhuma área é mais importante que a outra e a prioridade é ditada pelo momento histórico (não tem nada a ver, mas hoje estou todo cheio de parênteses mesmo: alguém se lembra de "momento histórico"? Antigamente a esquerda falava muito em momento histórico, nunca mais ninguém falou).
Por que não aproveitamos o embalo e criamos a Agência Nacional da Contextualização da Arte, que, pelo porte que deverá ter, melhor ficaria se ministério? Tirando pela fertilidade cunicular (vamos lá, nunca mais fiz a brincadeira do dicionário, e esta é boa, não tem no Aurélio nem no Houaiss) na gestação de ministérios, demonstrada pelos últimos governos, uns quatro ministérios. E a Agência Nacional de Controle Social da Arte e da Cultura, junto à qual talvez finalmente consigam encaixar a tão ansiada Agência de Controle Social da Mídia. Aos melhoramentos culturais se aliariam os socioeconômicos, a geração de empregos, as novas profissões ("Explicador das Intenções do Artista", "Contextualizador Credenciado", "Esclarecedor Juramentado") - as possibilidades chegam a entontecer, roam-se e mordam-se os pessimistas.
Perdão, leitores mas, como temia, fui vítima de um assunto enxerido. Eu só queria comentar como é volúvel a ciência e como, cada vez a menores intervalos, o que ontem matava hoje rejuvenesce, o que hoje emagrece ontem engordava. Ia falar na retumbante redenção do coco ora em curso, matéria com que, baiano sendo, tenho algum envolvimento emocional. Mas aí fui botar mulher no meio e me enrolei todo. Domingo que vem, tento desenrolar.
O Globo, 6/5/2012