Durante 56 anos, Jorge Amado foi meu marido e meu mestre. O que sei com ele aprendi. Juntos, corremos mundos, percorremos os mais distantes países, os mais belos e estranhos.
Num navio-gaiola, atravessamos a Floresta Amazônica. Numa tenda, em pleno deserto de Gobi, na Mongólia, nos abrigamos de um vendaval de areias escaldantes. Enfrentamos um maremoto numa travessia no Mar do Norte. Num avião Concorde, rompemos a barreira do som. Descobrimos em céus de outros países e em surpreendentes galáxias as mais belas estrelas. Conquistamos amigos, personalidades as mais representativas de nossa era, companheiros maravilhosos.
Em 1947, um novo retrocesso democrático no Brasil, com perseguições, prisões e torturas, nos fez abandonar o país. O Partido Comunista, pelo qual Jorge se elegera deputado federal, foi cassado, seus deputados expulsos do Parlamento e perseguidos. Nossa casa foi invadida e saqueada por policiais. Não havia, pois, condições de continuarmos aqui.
No início de 1948, Jorge partiu para a Europa e eu fui ao seu encontro pouco depois, levando um filhinho de cinco meses.
A palavra exílio assusta e entristece, mas Jorge e eu resolvêramos viver em Paris, decidindo enfrentar todas as dificuldades que encontraríamos pela frente, naquele transe do país recém-saído da guerra.
Matriculei-me na Sorbonne e, durante os dois anos que passamos na França, fiz um curso de Civilização Francesa e um curso de Fonética.
Vivemos dois anos em Dobris na Tchecoslováquia, onde nasceu nossa filha Paloma. Estivemos e conhecemos todos os países de democracia popular, a União Soviética, a Mongólia e a China. Nosso exílio durou quase cinco anos e dele guardo grandes, terríveis e gratas recordações.
Aos 63 anos, escrevi meu primeiro livro de memórias, seguido por dez outros, todos editados por Alfredo e Sérgio Machado, da Record, entre os quais Anarquistas graças a Deus, Chão de meninos, Crônica de uma namorada, Um chapéu para viagem, Jardim de inverno, O segredo da Rua 18, Senhora dona do baile, A casa do Rio Vermelho, Cittá di Roma, Códigos de família, Jorge Amado: um baiano romântico e sensual e Memorial do amor.
Já tínhamos regressado ao Brasil quando Jorge recebeu um convite da Sorbonne para nela receber uma grande homenagem. Ele ficou entusiasmado, embora não estivesse em condições de viajar. Sofrera um infarto e andava atormentado com um grave problema de visão, uma degenerescência senil da retina que lhe dificultava a leitura.
Não adiantaram conselhos para que não viajasse. Resolveu ir e fomos. Ele aproveitaria a ida a Paris para consultar seu oftalmologista, reveria os amigos, mataria saudades e teria a enorme honra de ser laureado por uma das mais importantes universidades do mundo.
Havia, porém, um sério problema a resolver: o do discurso a pronunciar na solenidade da posse. Jorge não estava podendo escrever, mas esse não seria o maior empecilho. Ditaria para mim. O problema mais grave era que ele não estava conseguindo ler. Finalmente, foi encontrada a solução: conhecedora dos segredos da computação, Paloma ampliaria bastante, o mais possível, as letras do texto, facilitando a leitura.
No dia da festa, uma comissão de professores levou Jorge não sei para onde. A sala já estava lotada. Eu, João Jorge e Paloma ficamos na primeira fila, junto ao palco. Ouvimos os primeiros acordes de uma orquestra, dando início à cerimônia. Uma grande porta lateral foi aberta e começaram a entrar os professores envergando suas togas negras com arminho branco nos ombros. Dentro daquela imponente vestimenta, Jorge parecia um gigante. Estava ladeado pela professora e pelo professor que iriam saudá-lo. Adiantei-me, encostei-me no palco e entreguei-lhe o canudo com aquelas enormes folhas de papel nas quais estava o seu discurso.
Quando uma voz solene o anunciou, Jorge dirigiu-se ao microfone. Com a maior tranqüilidade, leu o texto, agradeceu as palavras de louvor que acabara de ouvir. E terminou dizendo: ''Merci beaucoup de tout mon coeur!''
Em agosto de 2001, Jorge partiu para sempre. Nessa viagem, não pude acompanhá-lo. Tudo fora feito para que ele permanecesse ao nosso lado, mas seu coração não resistiu.
Fui convidada a preencher sua vaga na Academia de Letras de Ilhéus e tomei posse a 14 de março de 2002. Depois, aceitei o convite para candidatar-me à sua vaga na Academia de Letras da Bahia. Fui eleita e tomei posse a 18 de abril de 2002.
Consultada e aconselhada por amigos, membros da Academia Brasileira de Letras, a candidatar-me à mesma cadeira 23 que Jorge ocupara durante 40 anos, aceitei o convite, elegi-me e empossei-me no dia 21 de maio de 2002 não para substituí-lo, porque Jorge é insubstituível.
Restava-me repetir as suas palavras pronunciadas na Sorbonne: ''Muito obrigada, de todo o coração!''
Jornal do Brasil (Rio d Janeiro) 06/07/2005