Acabo de ler que há suspeitas de que, nos Estados Unidos, existam alguns homens com mil filhos - ou muito mais, segundo os exaltados - de ambos os sexos e aproximadamente da mesma idade. Para mim foi uma grande surpresa, embora seja natural de Itaparica, ilha de mulheres famosamente ferazes e varões façanhudamente femeeiros, onde proles numerosas são a regra. E as exceções a ela são descendências legendárias, como a de um certo tio-avô meu cujo nome deixemos pra lá, que, diz o povo, fez mais de 20 em casa e, variando conforme o narrador, 70 e tantos na rua, entre teúdas, manteúdas, fugazes aventuras galantes, casadas inquietas, viúvas inconsoláveis, comadres traquinas, maus passos da mocidade e raparigas diversas. Falam até que ele nem era o recordista, havia vários outros que o superaram.
Mas mil, meus caros amigos, mil nem o finado Helinho Codorna, que justamente levava esta alcunha por, no enfático dizer de Jacob Branco, "ser um fenomenal erotômano, que só pensava nisso, só fazia isso e morreu de fazer isso". Por mais que o sujeito seja despachado, fazer mil filhos - e todos mais ou menos da mesma idade, ainda por cima - não parece empresa simples. Mas isso é porque ainda não nos acostumamos direito aos novos tempos e não nos damos conta das implicações de fatos que já fazem parte do cotidiano. Deve haver mesmo pais com mais de mil filhos, é bem possível.
A matéria explica que muitos homens são doadores de sêmen, mas poucos têm um sêmen "ideal". Ele pode conter traços genéticos indesejados e outras "impurezas", com o resultado de que uma amostra do bom, ou do mais em demanda, se valoriza e é muito usada pelo banco que a fornece para inseminação artificial. Daí se temer que um número inestimável de meios-irmãos, ou seja, filhos do mesmo pai com dezenas, centenas ou milhares de mães, já esteja circulando por aí, correndo até o risco de virem a casar-se entre si. Não sei se há exagero nisso, mas, se houver, não deverá ser muito, porque já se formam movimentos de possíveis prejudicados, notadamente entre os pais de filhos gerados por sêmen de doadores anônimos. Tampouco sei em que medidas concretas isso vai dar - talvez a exigência de que os noivos façam sempre testes de DNA, para ver se não são irmãos ou filho um de outro, embora eu não creia que isso evite grandes traumas e mesmo tragédias.
É possível que seja mera caturrice minha, mero apego a valores destituídos de fundamentos sólidos, mas não acho certo esse negócio de o sujeito ter milhares de filhos, é muito estranho. Não creio que haja muitos homens que, depois de pensarem um pouco, gostem da ideia de ter filhos seus anonimamente espalhados por aí, quando o impulso que antigamente era tido como natural seria conhecê-los, conviver com eles, aprender com eles e, enfim, ter a relação que a maior parte dos pais quer ter com os filhos. Compreendo quem queira gerar um filho por inseminação artificial, mas creio que os critérios, a começar pela própria área médica, poderiam ser revistos, porque assim chega a parecer coisa de gado, de animais criados quase em moldes industriais.
Mas nada deverá ser revisto, a não ser na direção oposta. Alegam-se impedimentos éticos e legais para a realização de certos experimentos com seres humanos, mas nada de fato impede que eles venham sendo feitos, pois há muita glória e, principalmente, dinheiro, envolvidos nesse campo. E os cientistas não constituem, ao contrário do que são levados a crer os leitores das páginas de ciências dos jornais, uma comunidade homogênea, que partilha dos mesmos valores, tem a mesma ideologia e os mesmos princípios e, enfim, não conta com canalhas e possíveis delinquentes em seu meio. Há tantos carreiristas venais entre eles quanto na sociedade maior de que são parte.
Não sei em que escala isso já se dá, mas é possível, por exemplo, escolher o sexo do bebê a resultar da inseminação. Em breve, quem sabe se essa escolha não virará rotina, ou até obrigação, por força de alguma lei que pretenda regular a composição demográfica do País? Onde ter filhas dê prejuízo (como nos casos em que o pai precisa oferecer um dote), o sexo preferido vai ser o masculino. O mesmo nas culturas genericamente denomináveis de machistas. Só pode inspirar pesadelos, em que exércitos de donzelões chineses invadirão países vizinhos, dispostos a tudo para asfixiar o anserino (vão ao dicionário somente esta vezinha; não foi por pernosticismo que escrevi isso aí, foi para pôr traje social numa expressão normalmente um pouco deselegante). E os países que produzirão meninas adolescentes para exportação?
Já se começa também a pensar nas aptidões que poderão ser "aplicadas" ao bebê em formação. Não devo estar muito equivocado em apostar que a maior parte dos pais vai querer que seus filhos nasçam com aptidão para ganhar dinheiro. Mas um país exclusivamente de banqueiros, políticos e malandros não pode subsistir (ou pode? examinar o caso do Brasil numa ocasião futura). Tem que haver quem trabalhe e então, naturalmente, o governo criará a Agência Nacional do Nascimento e da Vocação, destinada a produzir critérios e metas para organizar a caótica reprodução humana estabelecida com as novas tecnologias. Metas serão traçadas pelos economistas e demógrafos, para a criação da correta mão de obra para cada década. Mas, como de hábito, as metas vão revelar-se todas furadas e o pandemônio populacional se apresentará em novas formas. Isso para não falar nas exigências de cotas para profissões, tipos físicos, cores da pele, vocações, opções sexuais e assim por diante. E, finalmente, talvez mais cedo do que se espere, a Polícia Federal executará a Operação Cromossomo, com a prisão de vários implicados na adulteração e falsificação de gente. Mas ninguém vai ficar na cadeia.
O Globo, 22/4/2012