O ano, para surpresa ou susto de muitos, acabou. Claro, ainda virão a comemoração do Natal e as festas de ano-novo (antigamente se dizia também “ano bom”; porque será que isto caiu em desuso?), mas a árvore da Lagoa já cintila e já há um cheiro de fim de ano no ar. O sorriso e o calor no peito trazidos pelo 13.º se irradiam entre as multidões que vão e vêm diante das vitrines, os táxis ficam um pouco mais difíceis, o gerente da padaria entrega sorridente seu calendário para os fregueses fiéis, com um Cristo louro, de olhos azuis revirados, ilustrando máximas judiciosas e conselhos pios.
O Universo não está dando muita pelota, mas nós criamos datas e dias da semana e lhes atribuímos poderes mágicos. O ano podia terminar, como em várias culturas e religiões, em qualquer outro dia. Mas aqui, para a maioria de nós, a Terra completa seu movimento anual em 31 de dezembro e encaramos essa passagem como algo significativo para nossas vidas, mesmo que não creiamos em astrologia. Ano-novo, vida nova, dizemos, quase sempre tomando a decisão de parar de fumar e limitar o consumo de chope a quatro tulipas por sábado.Também achamos vagamente que a vida vai melhorar, que nossa atitude perante o mundo também vai melhorar, tudo vai ou devia melhorar no ano-novo. No Brasil, abriremos o intervalo anual entre réveillon e o carnaval– ou, mais realisticamente, a Semana Santa, quando, se espreguiçando, o gigante adormecido encarará o batente, em um ano mais feliz que o velho. Infelizmente, não dá para pôr muita fé nisso. A Europa está entrando no grande inverno de seu descontentamento, certamente bastante pior que o lembrado na peça de Shakespeare que cunhou a expressão. Por enquanto, aqui de longe, a gente nem imagina o que está se abatendo sobre países como Portugal, a Espanha e a Grécia. As finanças mundiais são uma gigantesca obra de ficção pervertida, com uma acumulação indecente de dinheiro virtual gerado pelo dinheiro, nas mãos de pouquíssimos, que jamais vão sair perdendo. A situação, criada com a decisiva colaboração de governos e burocracias incompetentes, levará a medidas espantosas, entre as quais cortes de 25% nos salários de funcionários públicos que ainda tiverem a sorte de permanecer empregados e a revogação de direitos adquiridos ao longo de gerações. Acho que nem um povo ovino, como nós, suportaria uma série de golpes tão atordoante.
No entanto, é o que deve acontecer, com certeza entre greves, manifestações, quebra-quebras, atentados e crises políticas.Na internet têm aparecido sugestões para a aplicação dos bilhões de euros que serão emprestados (a juros “saudáveis”) aos países mais aflitos. Dar-se-iam (estou chutando os números, de que não lembro, mas não faz diferença) € 15 milhões, por exemplo, a cada português.O dinheiro seria dividido como povo diretamente, solucionando de uma tacada os problemas do país. Mas claro que, assim que o cidadão tivesse seus 15 milhões, uma bica (cafezinho, lá em Lisboa) já iria custar, na primeira hora da nova “riqueza”, uns € 20 mil, fechando o dia a uns € 400 mil. E a última garrafa de um tinto modesto, na mercearia, seria arrematada por uns 15 milhões mesmo, depois de uma concorrência acirrada entre dois compradores. Isso porque esse dinheiro é o arroto de Mamon, não tem existência física, é uma virtualidade perversa,um jogo demoníaco de créditos e débitos, que volta e meia leva a crises como a da famosa bolha imobiliária americana e suas consequências (perguntem se há algum dos donos do finado Lehman Brothers passando fome) e agora à europeia. Não pode ser sacado, não é metal sonante (nem bem de consumo, como parecem pensar os que, aparentemente, acham que dinheiro pode ser comido), só tem existência virtual. Isto leva à necessidade de manutenção de um equilíbrio onde sempre a parte mais fraca é que paga a conta. O lucro não pode parar,porque o efeito sobre o restante da economia seria desastroso, um cairia atrás do outro.
Alguns dos elos da cadeia sucumbirão à volatilidade que lhes é própria, vão para o espaço, mas nada de fundamental mudará. Bancos vão quebrar, financeiras vão falir, acionistas vão ter grandes perdas, muita gente (não os ricos) vai ficar na miséria, mas o esquema básico permanecerá, os mesmos continuarão mandando e continuará a haver dinheiro fictício à custa dos súditos. Ainda é cedo para previsões, nessa barafunda em que os acontecimentos se transformaram, até porque a Alemanha, ao contrário do que acham diversos, não quer e não vai sair perdendo nessa. Quem pensa assim, non conhece o Alemanhas,está verrückt, maluco. Enquanto Portugal, Espanha, Grécia e outros se afundavam lentamente sem perceber, ou ameaçavam afundar, a Alemanha continuava com sua esplêndida economia. Como não existe almoço de graça, o almoço dela muitas vezes acarretou dietas restritas em seus parceiros.
O Brasil também faz parte do sistema e não deveremos ficar fora dessa, não vai escapar ninguém,nem os chineses. Mas torçamos para que o tranco nos seja leve. Por enquanto, em nosso futuro, sem otimismo ou pessimismo, só temos as certezas inelutáveis da existência, lembradas por um sábio Benjamin Franklin: death and taxes, morte e impostos. Dos impostos, melhor não falar, antes que criem um imposto para quem falar em imposto. A morte, esta prosseguirá sem grandes percalços, no descalabro da saúde pública, na facilidade com que se mata impunemente e na epidemia de dengue que, dizem autoridades com o ar casual de quem comenta que amanhã vai chover, se abaterá inevitavelmente sobre o Rio de Janeiro. Trata-se de uma doença grave, que mata, e se fala numa epidemia “inevitável” como se isso não fosse nada. Vai morrer gente, mas tudo bem, está previsto. Dá um pouco de medo do que vai acontecer depois do intervalo.
O Globo, 4/12/2011