A medida do verso, a métrica, o ritmo, a cadência, a pulsação de um grupo de palavras dispostas em determinado jeito, tudo o que dá à poesia seu caráter de canto, de cântico, de cantiga, de peça oral vocabular, de monólogo cantado em silêncio, tudo está ligado a movimentos e ao compasso da vida comum dos homens, a seus ritos cotidianos e a seus passos, rápidos ou mansos, em cima de um chão.
Na poesia grega, o verso reproduzia o percurso feito por um dançarino ao redor de um altar ou de um túmulo, e a cesura vinha a ser a marcação da metade do caminho percorrido.
Levando o verso para o palco, a linha poética representava o tempo (e o espaço) que o ator consumia para atravessar todo o palco ou apenas um de seus setores. Tanto a medida dos versos como as próprias palavras brotavam do corpo, sem que se esqueça que os tambores gregos, com toques binários, tinham, relação com a métrica da poesia normal da época.
Nenhum outro poeta brasileiro me parece, como Ledo Ivo, representar integralmente essa ligação visceral do poema com os movimentos da vida, e sua nova recolta de poemas, "Plenilúnio", vem provar precisamente isto, na culminância de uma obra que vem de longe e conta com dezenas de volumes que marcaram indelevelmente a memória poética brasileiras desde seus primeiros livros - "As imaginações" e "Ode e alegria" - que nos davam a notícia de que a terra de Castro Alves tinha um novo poeta. Existe, em Ledo Ivo, uma preeminência da forma, aliada a uma explosão de conteúdo.
Que sua poesia é explosiva: sempre foi. Nunca se lhe viu um poema acomodatício, mais ou menos bem comportado. Atravessou permanentemente o Equador da técnica poética, indo além da simples formatura das palavras (formatura mesmo, como soldados enfileirados) para romper o bom-mocismo que tem sido a base de muitas profissões, mas com o qual a poesia não combina.
Sua família é a de Baudelaire e Rimbaud. Como eles também, muitos de seus versos formam uma grande linha de palavras que fazem questão de se manter unidas, embora, na realidade, dêem saltos sobre si mesmas e inventem novos sentidos para suas sílabas.
Essas palavras encarreiradas são herdeiras do tipo de ritmo poético do ator ou bailarino da Grécia antiga, em seu dominar o espaço de um palco (ou de um templo, ou de uma cerimônia mortuária).
Com Ledo Ivo, a poesia é canto, cântico, cantiga, peça-coral vocabular, e o cuidado com que ele examina, depura e emprega cada palavra é responsável pela nobre contenção de seu verso.
Fazer poesia pode ser, no caso de Ledo Ivo, um exercício sacerdotal, no cumprimento de um rito (mesmo os poetas demoníacos - ou talvez principalmente eles - podem ser altamente religiosos em seus versos, dessa religião mística de que os "hippies" de sempre seriam também exemplos, e aí estão Poe, Baudelaire, Rimbaud, Francis Thompson como alguns dos representantes máximos dessa poética).
Em seu poema "A mesma casa" pede à alma que o abandone, deixe-o em paz, não a suportava mais, cansado está, mas responde-lhe a lama: "As almas não são anjos. Não têm asas./ Nem voam no azul do firmamento./ A tua casa é a minha casa./ Nenhuma alma vai embora/ antes do corpo que espera a hora/ da lápide ou da cova rasa./ As almas, como o gelo, se evaporam/ no dia findo."
Num de seus poemas, diz: "Ainda não desisti de encontrar Deus./ Desconfio que o gavião o esconde em suas asas/ e os sonhos o abrigam nas dobras de sua oculta sabedoria."
O rompedor de normas não leva em consideração as resistências do mundo. Cada coisa tem sua norma intrínseca. Própria. Acho, por exemplo, que um objeto cai por uma questão de ética. Largado no ar, é de sua natureza, de sua ética, obedecer à lei da queda.
Cada poema novo traz suas próprias leis, sua compreensibilidade, sua intransferibilidade de feitura e de sentido. Ledo Ivo foi, desde o começo, um insubmisso. Mais o é ele neste livro recente, impresso há poucas semanas.
"Plenilúnio" não se parece a nenhum outro tipo de poesia que tenhamos no Brasil neste começo de um milênio. É de feroz originalidade. Citem-se os versos em que se recusa a aceitar apenas o idioma como base de uma pátria.
Eis o que diz: "Minha pátria não é a língua portuguesa./ Nenhuma língua é a pátria. / Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci/ e o vento que sopra em Maceió./ São os caranguejos que correm na lama dos mangues/ e o oceano cujas ondas continuam molhando os meus pés quando sonho."
O poema termina com estes versos: "Nenhuma língua enganosa é a pátria./ Ela serve apenas para que eu celebre e minha grande e pobre pátria muda,/ minha pátria desintérica e desdentada, sem gramática e sem dicionário,/ minha pátria sem língua e sem palavra."
"Plenilúnio" é uma edição Topbooks. Capa de Adriana Moreno. Orelha de Alexei Bueno.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) 25/05/2004