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Instituições, cultura e cidadania

 

A assinatura de um instrumento de cooperação entre a Câmara dos Deputados e a Academia Brasileira de Letras, tem como objetivo divulgar a programação cultural da Casa de Machado de Assis.

Não é preciso reiterar o efeito multiplicador que possui a veiculação da imagem pela televisão e o apoio que representará para as atividades da ABL a sua inserção pela TV Câmara.

É ocasião oportuna para, ressaltando a importância do acordo, fazer breve reflexão sobre o papel das instituições no âmbito da cultura e da cidadania.

Antes de tudo, é preciso recordar que a Câmara e a Academia são instituições que duram além do presente. Elas ultrapassaram diferentes épocas, conjunturas, governos, sistemas políticos, escolas literárias, tendências intelectuais.

A Câmara dos Deputados, prestes a completar 200 anos de atividades, a Academia Brasileira de Letras com 123 anos, o que não é pouco para um país com cinco séculos de existência.

Viram a ascensão, o apogeu, a decadência e a queda de concepções, fórmulas, soluções, agrupamentos e lideranças, quer pelo desgaste natural do tempo, quer, mais positivamente, porque os problemas que os geraram ou polarizaram foram resolvidos.

Durando, se modificaram, porque a história é puro movimento embora permanecendo fiéis à sua essência, a representação e a participação política da sociedade, num caso, e a produção e a disseminação da cultura, no outro.

Durando, se aperfeiçoaram, porque a experiência acumulada serve para aprimorar o pensamento e a sensibilidade, e para refinar os critérios das escolhas.

Assim fazendo, cumpriram o destino das instituições enunciado por Montesquieu. Aliás, um dos formuladores da instituição parlamentar como a conhecemos: os homens criam as instituições e estas, por sua vez, geram novos homens, que nelas atuam, num processo de aperfeiçoamento constante.

Podemos sorrir da ideia de progresso excessivamente otimista embutida na visão do filósofo. Mas é inegável - no caso das instituições que hoje se encontram - a contribuição que deram para o Brasil.

Essas notáveis folhas de serviço se explicam pela opção de ambas por dois compromissos institucionais.

O compromisso pelo Brasil, de modo que o “país do futuro” de Stefan Zweig deixe de ser uma linha de horizonte, que se afasta à medida que nos aproximamos, e se torne uma realidade presente, de um país grande, próspero e sobretudo livre e tolerante.

O compromisso com o povo e a cidadania, que consiste basicamente no exercício cotidiano, quase banal e naturalizado, dos direitos.

Direito à liberdade, o mais fundamental de todos, oxigênio sem o qual a sociedade definha e morre, como morrem as coletividades: tornando-se cinzentas, apáticas e despojadas de esperança.

Direito à igualdade, permitindo a todos os membros oportunidades de acesso e meios para a realização de seus objetivos.

Direito ao bom governo, expressão medieval, sempre atual, que associa a vida pública ao correto desempenho de seus dirigentes, para que raciocinem com clareza sobre suas escolhas e ajam de acordo com os princípios éticos, para o bem comum.

Direito à felicidade, esta expectativa otimista do Iluminismo, ingênua talvez, de trazer o Céu à Terra, antecipando da vida eterna para a vida histórica a viabilidade da realização pessoal.

É tendo como pano de fundo estes dois compromissos que a Academia Brasileira de Letras orienta suas atividades e seleciona as opções para sua programação cultural.

Elas dizem, antes de tudo, respeito à forma brasileira de produzir cultura. Nosso fundador Machado de Assis afirmava que o instinto de nacionalidade de um povo se revelava no “modo de ver e sentir”, tornando-o próprio dele e distinguindo-o dos demais.

Esse “modo de ver e sentir” é a seiva que alimenta o patrimônio comum do povo brasileiro, o faz reconhecido e inspira suas realizações.

Como está na história e se refaz todos os dias, não pode ser algo estático, vive sempre em transformação criativa.

Porque somente se enriquece na troca de visões e experiências, não

é autofágico: depende do “comércio de ideias” - como diziam os autores iluministas - para se enriquecer e o nacional intercambia com o regional de nossa cultura e com o universal das demais culturas.

Essas atividades da ABL priorizam a defesa da língua e o cultivo dos valores literários, como suas congêneres de outras nações. Não é por acaso que nos países de fala castelhana há uma “Academia de la lengua” que trata do idioma e uma “Academia de la Historia” que trata do passado comum.

Mas a ABL valoriza também todas as demais expressões culturais e lhes dá guarida no que produz. A velha fórmula de Terêncio sobre nada de humano lhe ser indiferente pode ser honestamente glosada pela Academia: nada do que é cultural nos é indiferente.

Isso nos leva à conclusão lógica: o cultural é pela sua própria constituição, diverso.

O respeito à diversidade e - mais que isso - sua valorização, é a garantia da nossa criatividade e nos dá a certeza de que nos sintonizamos com a alma coletiva.

Diversidade e consequentemente uma atitude pluralista, que não teme, antes estimula o contraditório de posições e a contrastação de ideias, para que as avaliações e escolhas se façam em plena liberdade e com abertura de espírito.

Com tais compromissos e tal disposição, creio que posso dizer que a Câmara dos Deputados do Brasil e a Academia Brasileira de Letras - sublinhe-se, instituições centenárias da experiência histórica brasileira, trabalharão juntas para realizar algumas finalidades comuns.

Pela cultura brasileira, valorizando o que se produz de mais característico, em especial o “modo [brasileiro] de ver e sentir” na percepção da realidade, na identificação de seus problemas, no equacionamento das soluções.

Pela educação brasileira, inseparável da cultura como de tudo o mais - inclusive da economia e do exercício do poder - para que a ciência, a arte, o pensamento livre e a reflexão se disseminem e se tornem um hábito natural de nosso comportamento.

Pela sociedade brasileira, para que tenhamos um povo mais livre, menos desigual, mais feliz e com mais acesso aos bens culturais.

Pela vida política brasileira, para que o maior número possa participar da vida da comunidade, da “república”, terminando com a tradição negativa apontada pelo cronista Frei Vicente do Salvador há quatrocentos anos: a de que no Brasil o comportamento social não era de “república”, mas do exclusivo interesse particular.

Nesse trabalho conjunto da ABL e da Câmara, estarão subjacentes como condições absolutamente necessárias, aquele pluralismo que nos estimula a empatia pela diferença e a tolerância, que a história demonstrou ser condição determinante para o sucesso ou o fracasso das nações.

Nesse espírito, creio poder interpretar com fidelidade o sentimento da Academia a respeito, que será explicitado com mais proficiência pelo presidente Marco Lucchesi.

A Academia Brasileira de Letras subscreve essa cooperação com a TV Câmara, em mais um procedimento para cumprir o que ensinou Machado de Assis do modo mais sintético possível na sessão que encerrava o primeiro ano de atividades da instituição: simplesmente, “trabalhar pela extensão das ideias humanas.”

Portal da ABL, 24/06/2020