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Inconstância amorosa, tempo e política

 

As vozes se exaltavam na roda de estudantes perto do trailer de cachorro-quente, no Fundão. É claro que todos ali juravam não mudar o seu voto em plena campanha eleitoral. Mas criticavam as mudanças de opinião política, as traições e as palavras não honradas pelos políticos brasileiros. O campus da UFRJ em erupção. Deveriam, eles, no entanto, ao invés de discussões inúteis, mergulhar em alguns mitos e textos da literatura mundial para embasamento mínimo dos argumentos. Tomassem a noção de tempo e o sentimento amoroso como tema transversal e escolhessem, por exemplo, o mito de Dom Juan, de Tirso de Molina, retomado magistralmente por Molière em 1665, ou a lenda celta de Tristão e Isolda, mega conhecida da literatura mundial, transformada em Ópera por Wagner, ou o nosso Bentinho às voltas com o tempo e a insegura paixão amorosa por Capitu, a morena que o fragiliza até com o olhar. Em Tristão e Isolda a inconstância amorosa é eliminada a partir da ingestão do filtro do amor pelos dois amantes. O tempo não conseguirá, assim, acabar com a paixão. Essa paixão é, então, a negação do tempo. E se não tomassem o elixir? Há uma recusa da inconstância dos desejos, os amantes se iludem a eles mesmos, se dão um poder que não têm, mas o elixir do amor faz a parte dele. E a coisa funciona! No donjuanismo é diferente. Aqui a questão é a palavra de honra. Entram em cena as noções de fidelidade e de lealdade. Dom Juan trai, mas a esposa também não quer que o marido fique colado nela só por lealdade à palavra empenhada no casamento. Prefere a fidelidade. Acontece que Dom Juan trai por amor. É uma maneira de se libertar desse sentimento que o faz vassalo das emoções. E é o medo da inconstância causada inevitavelmente pelo tempo, esse transformador de ideias e de sentimentos, como relembram os estudiosos da matéria.. E ao nosso Bentinho resta a desgraçada decifração do amor da Capitu, a dissimulada. Como não consegue saber dos sentimentos mais profundos da moça, a jovem que lhe embaralha a razão, Bento se deixa levar pela rabugice e pelo mau humor. Capitu é infiel mas leal ao pacto do casamento, pois se o trai é clandestinamente, deve pensar ele. Ela ama o pacto ou ama Bentinho? O tempo trará a verdade. Mas essa verdade lhe será favorável? E foi essa mesma passagem do tempo que mudou o amor de Capitu por ele, se alguma vez existiu? Capitu muda toda hora! Vira até narradora da história narrada por Bentinho. Bento nunca saberá a verdade. Porque ela não existe, existem versões. E o romance serve como metáfora para jogar na cara do leitor e da leitora o quão difícil, se não impossível, é conhecer a verdade. Ou a realidade.

As vozes da UFRJ deveriam - voltando a elas - se perguntar: traiu porque não tomou o elixir? Traíram, os políticos, de tanto que amam o seu Partido e não querem ver a sua corrente política se esfacelar no poder? A amante traiu porque entre a lealdade e a infidelidade prefere esta última? Traíram, os políticos, porque querem espaço? Ou traíram porque o tempo (sem o elixir) lhes alterou a ideologia e a concepção do mundo, como se dá com o amor?

Facebook/ Redes Sociais, 22/07/2024