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Grave crise existencial

 

Peço desculpas por repetir observações que já fiz aqui há tempos, mas arrisco achar que a maioria dos leitores não vai lembrar e os poucos que lembrarem não se aborrecerão. É a respeito do peru. Não o peru que pode ter ocorrido aos maliciosos entre vocês e, sim, a injustiçada ave que leva esse nome, segundo muitos prima do faisão pelo lado pobre da família, ou seja plebeia, discriminada de nascença e com certeza recalcada. Mas isto está longe de resumir seu drama e creio conhecer o suficiente dele para expô-lo com a compaixão adequada.

O peru, que não se origina do Peru (embora, em Lima, as barracas de feira e os quituteiros de rua sirvam peru de todos os jeitos, como na Bahia servem acarajé; peru é comida popular no Peru) desenvolveu um problema de identidade. Deram-lhe o nome de peru porque se dizia em Portugal que vinha do Peru, mas, no próprio Peru, ele é chamado de pavo. Pavão é pavo real, ou seja, ainda sugerem, num trocadilho fácil, que o peru não é real, não existe, só existe o pavão. Ele vem da América do Norte, mas lá mesmo sua nacionalidade não foi reconhecida e o denominaram turkey, pois se acreditava que vinha da Turquia e talvez fosse chutado do país, se Romney tivesse vencido.

Na Alemanha, onde ele hoje é chamado de Puter, iniciou carreira crente que vinha da Ásia, pois todos o conheciam como kalikutischer Hahn, ou seja, galinha de Calicute. Fenômeno parecido aconteceu na França, onde hoje ele leva o nome afrescalhado de dindon, que vem de coq d'Inde, galo da Índia. Há mais o que dizer sobre o enroladíssimo psiquismo do peru, mas receio que até o mais paciente dos leitores declina da oportunidade de continuar no assunto.

Desculpo-me novamente, mas sem esse preâmbulo, não sei muito bem por que, eu teria dificuldade em descrever a situação em que, conjuntamente com outros escritores e artistas de modo geral, me vejo cada vez mais envolvido. Ainda que mal comparando, a situação de quem vive de direitos autorais é análoga à do peru. Ou pior, porque outro dia, não lembro mais onde, li que já morremos todos. O autor morreu, disse o pensador, não existe mais isso. Quer dizer, nem do que está reproduzido aqui eu posso pretender ser dono.

Um pouco intimidado e compreensivelmente confuso, tento soerguer-me na tumba e logo o sagrado direito à informação me sepulta de novo. O que escrevo pode, no sentido mais lato, ser qualificado de informação e, por conseguinte, se eu cobro pelo que escrevo, estou cerceando gravemente esse direito. Está certo, posso até concordar para não discutir, mas o direito a comer também é sagrado e, contudo, se o gerente do supermercado for solicitado a por essa razão dispensar o pagamento das compras, imagino que fará algumas objeções. Da mesma forma, o direito à saúde é universal, mas os médicos, dentistas e terapeutas insistem em ser remunerados por seus serviços.

O artista, diz aqui, deve ter generosidade intelectual, a arte é um bem que nasce de todos, para a livre fruição de todos. Como um monge franciscano, o artista deve despir-se não só da vaidade, como do apego aos bens terrenos. O artista não é um ser comum e já desilude bastante os admiradores, quando confessa que tem o hábito de comer todos os dias e que, vergonha mate-o, gosta de dinheiro. Não em demasia, mas gosta e a mulher, num momento de fraqueza, pode queixar-se de que faz tempo que não saem. Há que ter paciência com eles, eles acabam despertando para a inevitável realidade nova.

Porque a maioria dos escritores encara com relutância a ideia de santificação inanida, somente aqueles que têm fontes de renda poderão escrever. Quanto aos outros, que consigam empregos com os poderosos, que cavem uma sinecurazinha, que ganhem dinheiro nas bolsas de valores e escrevam nos momentos de lazer, mas não desçam à infâmia de cobrar pelo que escrevem. Além de tudo, tem muita gente por aí, mas muita gente mesmo, que gostaria de pôr no papel sua biografia ou alguma experiência marcante. Quantas vezes não se ouve a frase "minha vida daria um romance"? Pois é, pena de aluguel, aí está um mercado praticamente virgem. Se o indivíduo se diz escritor, então escreva. Sem querer privilégios e sem fazer chiquê, com profissionalismo.

Além disso, já circula a ideia de o Estado resolver esse problema com a eficácia de sempre e garantindo a sobrevivência do escritor. Para isso, alguns passos simples satisfariam. Primeiro, a regulamentação da profissão. Seria realizado um concurso e os aprovados passariam a portar carteira de escritor, com a qual teriam direito exclusivo de exercer a profissão. Depois seria criado o Conselho Editorial Nacional, ao qual os escritores apresentariam seus projetos, rápido e sem pistolões ou propinas, como é regra no Brasil. E o Conselho estabeleceria temas anuais do interesse do País, incentivando romances que tivessem como pano de fundo, por exemplo, a Saga do Pré-Sal ou o Mistério da Transposição de Águas do São Francisco. Aprovado cada projeto, seu autor passaria a receber um módico estipêndio mensal, pois não se pode ser pródigo com o dinheiro público, com a obrigação de periodicamente prestar contas do andamento do trabalho e obter a aprovação do Conselho, fazendo as alterações de forma e conteúdo que este determinar. Com isso, além de os escritores não terem mais do que reclamar, o interesse nacional estará servido. Todo mundo vai ter direitos sobre o que o autor escrever, menos ele próprio, até porque já morreu. Ninguém estranha quando uma BBB ganha um ou dois milhões para mostrar o traseiro e ministrar-nos palestras filosóficas. Contudo, se um escritor, depois de décadas de trabalho, ganha um prêmio de cem mil, há grande estarrecimento e olhão geral. Mas, pensando bem, é isso mesmo, onde é que acho que estou? Na próxima encarnação, vou tentar vir de Mulher Fruta-Pão.

O Globo, 11/11/2012