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Gilberto Freire - 1900-1987

 

É fácil falar sobre Gilberto Freyre. É difícil falar sobre Gilberto Freyre. Escritor acima de tudo, exímio dominador da palavra, dono de um estilo que flui com a maciez de uma poesia que finge ser prosa, ergueu Gilberto Freyre toda uma sociedade colonial que nos explica e nos ilumina.


Nascido num fim-começo de tempo, na passagem de um século para outro, em 1900, exerceu profunda e permanente influência no modo como passamos a ver a sentir e a compreender as raízes de nossa gente e a formação da sociedade patriarcal brasileira em que, por muitas mudanças que nós e o resto do mundo tenhamos tido, nela ainda estamos.


Deixou-nos ele, também, uma nostalgia do passado e aquilo que serviu de base à nossa existência como país e que, à falta de melhor nome e por ser este o melhor, pode ser chamado de saudade.


Com base na cana-de-açúcar, tivemos uma sociedade doce. Tivemos tudo aquilo que Oswald de Andrade detestava quando nos chamou de "país da sobremesa e do açúcar". Ao contrário de Oswald, Gilberto fez a apologia da sobremesa em seu livro chamado "Açúcar", que tem o seguinte e longo subtítulo: "Em torno da Etnografia, da História e da Sociologia do doce no Nordeste".


Como, dentre o muito feito pela cana-de-açúcar na criação de uma sociedade civilizada brasileira, vem ela agora dar-nos uma surpresa com o milagre do etanol e imagino o que poderia Gilberto Freyre dizer dessa benesse inesperada de uma planta que, além de doce, pode também produzir energia.


Homem do Centro e do interior, conheci Gilberto Freyre por ocasião dos festejos do IV Centenário da libertação pernambucana do domínio holandês. Meu amigo José Conde, pernambucano, e eu, fomos convidados para as celebrações, durante as quais eu faria uma palestra sobre a poesia brasileira do momento. Foi Gilberto Freyre quem presidiu a mesa.


Escolhi dois poetas para a conferência - um de geração mais antiga, Jorge de Lima (1893 - 1953), e outro, da então novíssima geração, o pernambucano Carlos Pena Filho (1929 - 1960). Falando em seguida, Gilberto Freyre não demonstrou muito entusiasmo por Jorge de Lima, de quem elogiou apenas "Essa Nega Fulô", mas falou com muitos elogios de Carlos Pena Filho que morreria jovem, num desastre de automóvel.


Pouco depois, tornei-me grande amigo de Carlos Pena, quando ele e a mulher, juntamente comigo e com Zora, fomos hóspedes de Jorge Amado e Zélia em Salvador. Jorge achava Carlos Pena o melhor poeta jovem do Brasil.


Voltando a Gilberto Freyre, o ano de 1933 ficaria marcado na cultura brasileira como o de "Casa Grande e Senzala". Lançado pela Editora Maia e Schmidt, do Rio de Janeiro, teve imediato sucesso. Ali estava um retrato do Brasil com o qual o leitor comum concordava, nele vendo as razões do muito que somos.


Não concordo com a opinião de que Gilberto Freyre mostrou simplesmente um brasileiro "cordial" e, para muitos, a palavra "cordial" é negativa. Há os que pensam que devemos ser violentos, fazer revoluções, destruir o que puder ser destruído para criarmos um país novo.


Na realidade, temos, sim, um país violento, como vemos todos os dias nos jornais e na tevês, e será com certeza sem essa violência que chegaremos a um país dono de si mesmo. Quando "Casa Grande e Senzala" saiu em romeno, o Embaixador Jerônimo Moscardo me convidou para ir a Bucareste e falar na universidade local, apresentando o livro. Nas semanas seguintes, os jornais romenos discutirem o livro como de excepcional valor sociológico.


O estilo de Gilberto Freyre estuda a linguagem brasileira que as escravas negras e as índias usavam no lidar com as crianças inventando uma língua portuguesa toda especial, cheia de carinho, o que aparecia principalmente nos apelidos. Fui a Caruaru com José Condé e lá ele me apresentou um artista popular dizendo: "Este é o Antonio". Dirigindo-se a mim, o artista perguntou: "Tudo bem, Toinho?"


Eu já conhecia o Tonico, o Toniquinho, o Totonho, mas o Toinho era novo e mostrava a diversidade do carinho popular pernambucano.


Seu nome se tornou emblemático de uma posição nacionalista que Gilberto Amado buscava também, numa patriótica emulação, em torno do uso exclusivo de um prenome. Lembro-me de, certa vez, ter encontrado na José Olympio, Gilberto Amado autografando livro novo seu.


Disse-me logo: "Venha ver". Fui. Mostrou-me a dedicatória que acabara de assinar: "Para o Freire - com o abraço amigo do - Gilberto". O Amado me olhou brejeiro perguntando: "Ele vai ficar uma fera, não vai?" Respondi: "Com toda a certeza". É preciso que não se esqueça do Gilberto romancista. O livro "Dona Sinhá e seu filho padre" nos mostra um narrador seguro e, ao mesmo tempo, delicado no contar uma história de bela estrutura.


Como vêem, é fácil falar sobre Gilberto Freyre, mas, na verdade, é difícil mostrar toda a força de sua presença gigantesca na cultura deste País.


"Casa Grande e Senzala", em sua 51ª edição pela editora Global, traz a apresentação escrita pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, além da atualização e revisão das notas bibliográficas e dos índices onomástico e remissivo.


Tribuna da Imprensa (RJ) 24/7/2007