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Formando opiniões

 

Como já disse aqui, não gosto de ser chamado de “formador de opinião”. Não me agrada ser um cidadão como outro qualquer que, apenas por escrever uma coluna de jornal, ambiciona mudar a maneira de as pessoas pensarem. E nem creio que consiga isso, pois as opiniões costumam ser consideradas boas se coincidem, ainda que parcialmente, com as de quem é exposto a elas. Quem concorda comigo já concordava antes. Talvez sem perceber, mas concordava. Quem discordava vai continuar a discordar, talvez até com mais veemência.


Sou um democrata relutante, tipo Churchill. Extremamente democrata por questão de princípio, mas relutante em questão de fundamentos chamados de democratas. Por exemplo, a democracia parte do princípio de igualdade entre os cidadãos. Portanto, o sorteio seria o mais indicado. Nunca foi assim, exceto em episódios esparsos na Grécia antiga, em que ocorreu sorteio entre cidadãos, para funções públicas. Já que todos são iguais, por que não usar um sorteio? Idéia de jerico, claro (os gregos eram democratas, mas tinham escravos, que não mandavam em nada), porém defensável teoricamente, principalmente no caso de câmaras, assembléias, comissões e assemelhados. Uma assembléia sorteada no Brasil ia conter um número impressionante de analfabetos e desnutridos, mas não é essa a nossa realidade? Ou seja, basta de hipocrisia santimonial: não somos todos iguais.


Pensadores sérios, a começar por Platão, o avô dos tecnocratas em “A república” e Aristóteles, que não via grandes virtudes nela e até achava que há gente que nasce com pendor irresistível para escravo, não gostavam da democracia. O célebre “governo dos filósofos”, de Platão, não era mais do que o governo dos técnicos e especialistas, do que hoje chamam de intelligentsia, porque, na época, quem estudava seriamente qualquer coisa era “filósofo”, já que as ciências só foram classificadas muitos séculos depois. Um matemático era tão filósofo quanto um botânico e o que hoje chamamos comumente de ciência era “filosofia natural”. A mencionada república platônica rejeitava até mesmo a música e o teatro, era uma espécie de positivismo radical (cartas de protesto para o editor, pelo amor de Deus). Não vou com a cara da República de Platão.


Prefiro a democracia porque com ela vêm a liberdade de opinião e expressão, sem as quais já não podemos passar e com as quais a Humanidade conviveu muito pouco, ao longo de sua História e até hoje não convive inteiramente, inclusive no reinado ocidental do politicamente correto. Mas não podemos deixar de enxergar defeitos nela, a começar pela pretensa representatividade do cidadão, que só apita com seu votinho na hora de eleição, mas depois nem é ouvido nem cheirado para nada. Apesar de escolhido, eleito e pago pelo cidadão comum, este passa a ser subordinado de seu “representante” e não pode tomar ousadia. Pelo contrário, até pouquíssimo tempo atrás, o representante podia até dar um tapa na cara do representado, sem correr o risco de ser processado, porque os colegiados a que pertencia não davam autorização para o processo judicial, quando essa autorização só era lícita para permitir a livre manifestação feita na condição de representante e não para que ele saísse por aí xingando quem quisesse ou agredindo (e até matando) o eleitor, até que viesse eleição novamente e o eleitor passasse a ser tratado com imenso carinho. Países como os Estados Unidos, onde o deputado é ligado a um distrito definido, ainda amenizam esse problema consideravelmente, porque o eleito tem de prestar contas a sua freguesia (e presta, eu já vivi lá), mas entre nós “elegeu, fedeu”, até a próxima sessão de mentiralhada, suborno, negociatas, nepotismo e afins, quando o eleitor fica cheiroso novamente.


Além disso, a democracia não pode (e, certamente, não deve, mas é uma pena) escapar de certos fatores, tais como, pelo menos entre nós, a aparência física do candidato. Lula embranqueceu e passou a usar roupas de grife, por exemplo, embora isso não tenha adiantado muita coisa porque, se antes o gozavam por ser um operário com roupas e jeitão de operário, agora o gozam por ter assumido outra aparência e não dizer mais “menas”. Ciro, segundo ouço, é bonito (eu não acho muito, a não ser, decididamente, em comparação com o Enéas) e tem uma mulher muito bonita, além de simpática, aparentemente incapaz, por exemplo, como o namorado dela, de xingar alguém que faz ou diz um dos numerosos impropérios que ele solta, quando provocado. Quanto ao Serra, diga-se que finalmente conseguiu ver uma vaca, numa exposição agropecuária na Bahia, embora a vaca não fosse vaca mas, um touro. Ou seja, corremos o risco de eleger alguém que ou é arrivista, ou xinga ou confunde vaca com touro.


A democracia também exige dinheiro, e não pouco dinheiro. Isso só pode ser resolvido se o candidato, como raramente acontece, meter a mão no próprio bolso, ou se comprometer com quem o patrocina, aparentemente a fundo perdido. Não imagino que haja qualquer patrocinador que não espere alguma gratidão concreta, da parte do patrocinado. Deve haver, mas é seguramente tão difícil quanto achar um obeso na Somália. Quem deu seu rico dinheirinho para uma campanha espera o retorno, nem que seja em forma de prestígio ou para a mulher querer realizar o sonho de conhecer a Europa e receber celebridades. Ai de nós, geralmente não é por isso, é pela esperança de retorno financeiro, seja dinheiro mesmo, seja para manter as circunstâncias favoráveis a quem já é rico.


Finalmente, o voto no Brasil é um tipo estranho de direito. É direito, mas é dever, principalmente. Quem não votar, se estrepa todo para obter qualquer documento. Suspeito que, se o voto não fosse obrigatório, quase ninguém ia às urnas, com a conseqüência de que nenhum cargo eletivo seria legitimado por apoio significativo do eleitorado. Mas cessemos a ironia e o pessimismo. O presidente já chamou todos os candidatos para conversar, tudo correu de forma esplêndida e as instruções já foram passadas para cada um, não corremos risco, o FMI continua a mandar e nós a obedecer, inclusive quanto ao dinheiro que nos foi agora emprestado para pagar dívidas com bancos estrangeiros. A estabilidade do regime está garantida, até porque - cala-te, boca maldosa - a sugestão para as conversas com os candidatos saiu do FMI mesmo, direta ou indiretamente. Vamos ao hexa em 2006, que é o que interessa.


 


O GLOBO (Rio de Janeiro - RJ) em 25/08/2002

O GLOBO (Rio de Janeiro - RJ) em, 25/08/2002