Realizou-se este mês, em Salvador, uma reunião de âmbito continental que vale a pena que seja registrada e comentada. Foi um seminário-espetáculo denominado "Xangô na África e na diáspora". Grupos do Rio de Janeiro, de Porto Alegre, Recife, do Maranhão, lá estiveram com seus tambores e cânticos. A novidade foi a presença de uma delegação americana, representada por tocadores de atabaques e cantores de Nova York, em que se achavam Andrew Apter e Isamur Flores, que cantaram em iorubá, exatamente como os brasileiros.
O movimento geral teve a direção de Cléo Martins (Agbeni Xangô do Opô Afonjá, em cujo território tudo acontecia) e a supervisão geral foi da Iá Stella de Oxossi. Ouvir o americano Andrew Apter gritar a palavra iorubá "Eparrei", que é saudação que se faz a Iansã, foi uma novidade para os brasileiros que falam iorubá, e eram muitos no festival que teve o nome geral de "Alaiandê Xirê", em cujo decurso foi lançado o livro de Cléo Martins, "Ao sabor de Oiá".
Falemos do livro. Trata-se de um romance. Nele, consegue a autora recriar o mundo, veemente e vigoroso, do candomblé no Brasil, seja no levantamento de personagens que se destacam num enredo em que a magia se mistura com o dia-a-dia de cada um, seja no modo de conduzir a história, num dinamismo de ação que dá força à narrativa.
Toda uma experiência religiosa de um povo se reflete nos incidentes que a romancista revela, numa como que conquista de um mundo que é também nosso e que influi no pensamento e na conduta de milhões de pessoas. Cléo Martins desenha, com segurança, a linha da narração, mostrando, na conquista de um território novo da ficção brasileira, toda a autoridade de quem sabe o quão profundamente pode a sabedoria iorubá estar presente nos atos e escolhas das gentes, levando-as a decisões que abram caminhos e criem realidades.
A beleza das casas-de-santo brasileiras aparece com emoção no relato de Cléo, onde até o suspense tem lugar. A cena em que o Oluô Agenor Miranda joga os búzios para a iniciação de uma nova Ialorixá é dos pontos significativos do livro. O oluô examina cuidadosamente a posição de cada búzio e proclama que Iansã, a padroeira do terreiro, está dizendo que a cadeira da nova mãe-de-santo é de Oxum. Trata-se de palavra final, acrescenta, para perguntar, logo depois, qual a Oloxum mais velha da casa, pois será ela quem dirigirá o Axé a partir de então.
O estilo de Cleo Martins é o oposto da desconversa. Pega seus personagens com uma certeza sobre o que deve ser feito, leva-os à frente de modo claro, usando as palavras que possam dar mais força ao movimento da história. Poucos adjetivos, imprecações, sim, que elas fazem parte de uma busca, em que palavras litúrgicas têm um lugar necessário.
Sabe-se que a palavra é a base de tudo e, num romance como "Ao sabor de Oiá", é nas palavras que o sagrado reside. As saudações dirigidas a cada orixá surgem como encantações, apelos, saudações capazes de pacificar pessoas e ambientes.
Na seqüência da nova Ialorixá, narra Cléo Martins a dúvida inicial da escolhida, que hesita em aceitar o posto, mas, levada para a cadeira-chefe, assume o lugar e pede novas cadeiras para que Iemanjá fique à sua direita, Oiá à esquerda e Obá à direita de Iemanjá. A bela cena da iniciação de um Ialorixá é seguida por outra, passada num mosteiro do Paraná, que toma conhecimento da escolha da nova Mãe-de-Santo.
Desde que vivi na parte iorubá da África Ocidental, ponto de origem das cerimônias hoje existentes no Brasil e em muitas outras regiões das três Américas, aproveitei o que vi e senti nas cerimônias de Orixás em livros que procuram mostrar uma das raízes mais fortes de nossa formação cultural e religiosa. No livro de Cléo Martins venho agora encontrar a expansão dessa influência, em diálogos e descrições que vêm de uma vivência no mundo afro-brasileiro que a autora conhece como ninguém.
Romance brasileiro como os que mais o sejam, "Ao sabor de Oiá" realça a importância da tradição iorubá na cultura brasileira e chama uma vez mais a atenção para a verdadeira ponte entre universos diferentes, que viemos, ao longo do século passado, criando nesta parte do mundo, nesta margem de cá do Atlântico, herdeiros que somos do que a margem de lá nos enviou.
"Ao sabor de Oiá", de Cléo Martins, é um lançamento da Pallas Editora. Revisão de Marcos Roque e Maria Sidrin. Capa de Pedro Gaia e Felipe de Mello. Ilustração de José Carlos Martinez.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 09/09/2003