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Festa

 

Uma explicação simples para a proliferação nas favelas e nos subúrbios de campinhos de terra batida: o futebol, no Brasil, é esse fenômeno que leva à gloria e à fortuna um menino pobre, quase sempre negro ou mulato, o que já o situa em um país que aboliu a escravidão mas não a sua herança.

Pelé ou Neymar, esse menino serve de espelho às esperanças de um povo inteiro a quem o futebol oferece uma oportunidade — rara, quase única — de se sentir o melhor do mundo. A centralidade do futebol na vida dos brasileiros é razão de sobra para vivermos este mês em estado de euforia como se na Copa do Mundo estivesse em jogo a nossa identidade.

E, também, para detestarmos o que a Fifa produziu como espetáculo de abertura, um pastiche cafona da cultura brasileira, atestando abissal ignorância ou menosprezo por parte de quem o contratou. Um insulto ao país dos espetáculos grandiosos que põem em cena, a cada mês de fevereiro, milhares de figurantes em coreografias e cenários de tirar o fôlego, outro legítimo orgulho nacional. O Brasil está devendo ao mundo e a si mesmo uma apresentação autoral de quem somos. Um alerta e um desafio para a cerimônia de abertura das Olimpíadas de 2016.

A Copa do Mundo revela ambiguidades de nosso tempo. Um bilhão e meio de pessoas assistem às mesmas imagens confirmando o avanço da globalização. Mas o conteúdo das imagens a que todos assistem afirma os pertencimentos nacionais, expressos com símbolos ancestrais, bandeiras, emblemas, hinos entoados com lágrimas nos olhos. O nosso é cantado a capela pelos jogadores e uma multidão em verde e amarelo desafiando o regulamento da Fifa, entidade sem pertencimento que salpica no espetáculo, em poucas notas mal tocadas, o que para cada povo é a evocação emocionada de sua história. No mundo de hoje comunicação e mobilidade se fazem em escala global mas os sentimentos continuam tingidos pelas cores da infância.

O respeito às regras, saber ganhar e saber perder, são conquistas de um pacto civilizatório cuja validade se testa a cada jogo. A violência em campo que, aos habitués dos estádios parece normal, aos olhos de uma leiga torcedora de Copa do Mundo é aflitiva. Em equilíbrio instável, as equipes oscilam entre o compromisso com o fair-play e os tambores da guerra refletindo a banalidade com que, mundo afora, se convive com a brutalidade.

O futebol é useiro e vezeiro em contrariar cenários previsíveis. O acaso pode ser um desmancha prazer. A multidão que se identifica com os craques e que conta com eles para realizar o gesto de grandeza que em vidas sem aventura nunca acontece, essa massa habitada pela nostalgia da glória deifica os jogadores e esquece — e por isso não perdoa — que deuses às vezes tropeçam nos próprios pés, na angústia e no medo.

É essa irrupção do acaso que faz do futebol mais do que um esporte, um jogo, cuja emoção nasce de sua indisfarçada semelhança com a própria vida, onde sucesso ou fracasso depende tanto do imponderável. Não falo de destino porque a palavra tem a nobreza das tragédias gregas, do que estava escrito e fatalmente se cumprirá. O acaso é banal, é próximo do absurdo. É, como poderia não ter sido. Se o acaso é infeliz chamamos de fatalidade. Feliz, de sorte. O acaso decide um jogo. Nem sempre a vida é justa, é o que o futebol ensina.

A melhor técnica, o treino mais cuidadoso, está sujeito aos deslizes humanos. Quando toca o apito, entra em campo, com as seleções, a possibilidade de um pênalti que só existiu aos olhos do juiz, de uma expulsão que desarruma todo o time ou, reverso da medalha, de um prodigioso voo de pássaro de um atacante holandês.

Seremos campeões? Não sabemos. Tomara. O melhor do futebol é a alegria de torcer. Essa Copa do Mundo vem sendo uma festa vivida nos estádios, nas ruas e em cada casa onde se reúnem os amigos para misturar ansiedades. A cada gol da seleção há um grito que vem das entranhas da cidade. A cidade grita. Nunca tinha ouvido o Rio gritar de alegria. Um bairro ou outro, talvez, em decisões de campeonato. Nunca a cidade inteira, um país inteiro. Em tempos de justificado desencanto e legítimo mau humor, precisamos muito dessa alegria que se estende noite adentro nas celebrações e na confraternização das torcidas.

Passada a Copa, na retomada do cotidiano, é provável que encontremos intactos, o desencanto e o mau humor, já que não há, à vista, sinais de mudança no que os causou. Uma razão a mais para valorizar esse tempo de alegria na vida de uma população que, no jogo da vida, sofre tantas faltas.

O Globo, 21/06/2014