Este ano tanto o Natal quanto o ano-novo caíram num domingo (desculpem, não sei dizer se eles sempre caem no mesmo dia da semana e, portanto, não estou lembrando novidade nenhuma; tentei fazer as contas, mas não acertei, o finado Cuiuba tinha razão, sou meio fraco da ideia), ou seja, dia em que estas linhas modestas são publicadas. No domingo passado, minha intenção era escrever outra vez sobre o Natal e desejar a vocês boas festas, mas devo ter sido novamente acometido por um dos meus ridículos arroubos cívicos e trocado de assunto sem querer. Volta e meia, escrever é assim. Quando se vê, a desgraça já está feita.
Minha omissão natalina também pode ser devida a um trauma mais ou menos recente. Refiro-me ao dia infausto em que passei aqui uma receita de escaldado de peru, que era o que eu via fazerem, na Bahia, com o que sobrava do peru de Natal. Receio não me haver dado muito bem, porque recebi várias cartas me dizendo que, como cozinheiro, eu era um escritor razoável e outras me esclarecendo que escaldado de peru não é coisa só da Bahia, mas é manjado em todo o nosso imenso Brasil, às vezes chamado por outros nomes. Retiro a receita, retiro tudo. E as restrições ao cozinheiro doeram muito mais que as feitas ao escritor. Mas, porque sei que vai ter gente que na época não soube da grave polêmica, simplifico a única receita pela qual tenho a ousadia de responsabilizar-me. Pega-se o peru que sobrou, não precisa desossar, não precisa nada, basta desmontar a carcaça e usar os pedaços como ingredientes de um cozido. Pronto. Cozido mesmo, com paio, linguiça, quiabo, abóbora, maxixe, jiló, repolho e outras verduras à vontade, carne-seca, o que der na veneta como ingrediente de cozido. Novas cartas de protesto para o editor, por caridade.
Quanto ao presente domingo, claro que não estou esquecendo dar-lhes meus votos de um ano-novo excelente, com saúde, tranquilidade e grana. Sei que isso não é alcançável por todos, mas a gente deseja, de qualquer forma. O mundo é perfeito, diz meu velho amigo Benebê em Itaparica, não é como a gente quer. Já pensou se fosse como cada um quer? E, tudo bem pesado, acrescenta Benebê, a graça da vida é isso, nada é certo, tudo pode acontecer, o que parece que é no outro dia não é. Grande verdade, pelo menos não percamos a graça da vida.
E precisamos ter esperança em melhores dias, se bem que aqui de novo se aplicam as observações de Benebê, pois, sendo perfeito o mundo, os melhores dias de uns serão os piores dias de outros e vice-versa, nunca se sabe. E cada um imagina melhores dias como lhe convém ou como consegue. Eu, de minha parte, não estou disposto a começar o ano com pensamentos negativos e, por conseguinte, junto-me a todos os brasileiros que anteveem um 2012 prenhe de gáudio e venturas. Os presságios já são eloquentes, entre os quais destaco o que nos foi dado, mais uma vez, pelo Senado Federal.
Não tenho certeza quanto aos pormenores, mas li que o Senado Federal interrompeu seu recesso para dar posse ao dr. Jader Barbalho (não sei se ele de fato é doutor, mas, como qualquer brasileiro, conheço meu lugar e trato os homens logo do jeito a que eles estão acostumados). Com a habitual mesquinharia, a imprensa destacou os minguados vinténs que o senador vai embolsar com essa posse antecipada, como se um homem como o dr. Jader fosse dar importância a essa merreca, que só é dinheiro para jornalista morto a fome mesmo. Duvido que, se as obras de Irmã Dulce pedissem, ele não doasse a elas esse trocado todo e mais alguma coisa. (Fica aqui a sugestão às obras de Irmã Dulce, o endereço dele deve estar na Internet).
Ignorou-se o momento cívico, a celebração da solidez de nossas instituições. Quem entra não sai nem a pau, as instituições resistem a tudo. Pobre da sensibilidade que não se viu arrebatada por um frêmito de emoção, ao tomar conhecimento da decisão expedita do Supremo Tribunal Federal, deflagrando todo um vertiginoso processo - mais uma inovação brasileira, a posse expressa. Pois o Pará, estado do qual o dr. Jader é galardão, também se mexeu qual flecha disparada pelo arco de Pery. Diz aqui que o Tribunal Regional Eleitoral de lá diplomou o senador através de um telegrama, antes mesmo de receber a comunicação da decisão do Supremo. E aí o Senado, enquanto o diabo esfregava um olho, mais que depressa saiu do recesso somente para cuidar do assunto e, mais que depressa ainda, voltou ao recesso. Depois dizem que o brasileiro é lento, é a nossa mentalidade derrotista.
Com a lição que esse augúrio encerra, creio que se esvai o pessimismo acaso ainda existente. Há razões para crer que todos os que roubam dinheiro público, sem exceção alguma, continuarão a prosperar, ainda que alguns venham a ser incomodados por investigações rápidas e passageiras. Quanto a devolver o que gatunaram, tampouco há motivo de preocupação, os precedentes são raríssimos e pouco convincentes. Não será investigado nenhum juiz ladrão, todos eles também podem ficar tranquilos. Aliás, devem ficar mais tranquilos ainda, porque uma hora destas o Supremo manda encanar quem disser que há juiz ladrão, mesmo que haja provas. E, num plano mais local, a guerra contra as drogas e o jogo do bicho prosseguirá intimorata, não porque adiante alguma coisa, mas porque, sem ela e toda a dinheirama (dinheiro mesmo outra vez) que movimenta, como ia ficar a vida de tanta gente - das autoridades corruptas aos vendedores de armas, equipamentos e tecnologia? Ou seja, dirão vocês, será tudo o mesmo, com os mesmos tungando os mesmos, da mesma forma. Exatamente. O que dá pra rir dá pra chorar, pensem em quantos não ficarão alegres com essas perspectivas, o mundo é perfeito.
O Globo, 1/1/2012