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As famosas quem

 

É domingo e, como em todos os domingos, deverei comparecer ao boteco, item indispensável em minha agenda cultural. Não, não é preciso me de-nunciar como uma ameaça aos bons costumes e à saúde dos que acham que meu exemplo é seguido pela juventude ou mesmo pelos coroas do meu tope. Não só não acredito que meu exemplo seja seguido por ninguém como não estou recomendando que se encha a cara todos os fins de semana, ainda por cima chamando isso de atividade cultural. Já há bastante tempo, para espanto geral (inclusive de um senhor desconhecido que, incrédulo, se dirigiu um dia desses à minha mesa e cheirou minha bebida, aproveitando para fazer uma lavagem nasal e me obrigando a trocar de copo, eis que, talvez preconceituosamente, não bebo lavagem nasal nem minha, quanto mais dos outros), venho tomando porres exclusivos de guaraná, no qual posso me considerar experto (esta palavra existe, escrita desta forma, e só a estou empregando para me exibir mesmo) e creio já reunir qualificações para assumir um emprego de degus-tador numa firma do ramo ou assinar uma coluna para apreciadores.


Falo honestamente, quando digo que vou ao boteco por necessidades culturais. Socado aqui, entre os livros e delírios próprios de meu estranho ofício, passo a semana inteira sem pôr os pés fora de casa, a não ser pelas obrigatórias idas ao jornaleiro e à padaria. No boteco, aproveito para um reingresso, ainda que breve, na comunidade normal e aprendo muito, notadamente para aprimorar minhas parcas graças sociais, que, se nunca foram das mais renomadas, hoje atravessam séria crise, a ponto de eu já ter deixado de comparecer a muitos eventos, temendo novos desastres. Creio até que estou desenvolvendo uma certa fobia, porque a pressão aumenta a passos larguíssimos e não sei se conseguirei segurar a barra, a não ser que tome providências expeditas.


Explico o que quero dizer. Nas poucas festinhas e acontecimentos semelhantes a que compareço, minha ignorância se transforma em crescente fonte de embaraço e saio sempre com alguns novos desafetos para meu antigamente minguado acervo. Não importa quanto me esconda pelos cantos e por trás de velhos amigos, para evitar esses instantes terríveis, chega sempre a hora em que resolvem apresentar-me a alguém cuja cara nunca vi e cujo nome desconheço. Tudo bem, dirão vocês, não se pode conhecer todo mundo, qual é o problema? Ah, vocês não sabem. No caso, não se trata de uma personagem qualquer, mas de uma celebridade, que já chega a mim arrastada orgulhosamente por algum amigo ou conhecido comum e vem com cara de celebridade. Isso dá para sacar de longe e já fico suando frio.


- Eu não podia deixar de fazer esta apresentação - diz meu amigo, como quem está me abrindo a porta do Paraíso.


- Esta aqui é a Priscilla Andréa!


Priscilla Andréa, deslumbrante em seu modelito (ai meu Deus, nem isso eu sei mais, só me vêm a cabeça Jacques Fath e Christian Dior) exclusivo, faz uma cara de Priscilla Andréa e me estende a mão ou me dá dois beijinhos. Pronto, bola de meu lado da quadra e, como de hábito, não acerto a rebatida.


- Muito prazer - tartamudeio, depois de pensar profusamente e não conseguir achar nada melhor.


- Cara, aposto que você nunca imaginou, hem? A Priscilla Andréa as-sim inteirona na sua frente, hem? Pode se beliscar, cara, é ela mesmo! E é sua fã, hem? Me disse que leu o Sargento de milícias de uma vez só.


- Sargento Getúlio - respondo, na vã esperança de mudar de assunto.


- Desculpe, o de milícias é do Lima Duarte, é que eu sempre confun-do. Também, a presença da Priscilla, ainda mais com esse decote, é para deixar qualquer um zonzo, né não? Pois é, cara, não precisa me agradecer. Quantos no nosso Brasil não dariam tudo por este momento? Priscilla Andréa em carne e osso e ainda por cima sua fã!


- Muito obrigado, muito obrigado mesmo, fico sem palavras.


- Qualquer um fica! Mas você acha palavras logo! Quem é que não está curtindo a atuação dela em Sede de paixão?


- Sim, naturalmente. Muito boa, muito boa, é verdade. É... No papel daquela italiana, não é? Eu...


- Qual é italiana, cara, não tem italiana nenhuma nessa novela! Esta é a Priscilla Andréa, Priscilla Andréa, rapaz! Pelo menos na Playboy você deve ter visto, eu mesmo comprei vários exemplares, botei um no escritório, outro em casa, dei uma porção de presente, que arraso, hem?


- Ah, nem me fale, um arraso, um arraso. Não são aquelas fotos em Banguecoque?


- Qual é Banguecoque, rapaz, onde é que você vive? A Priscilla posou numa fazenda de gado da Austrália, não é possível que você não tenha visto, está todo mundo comentando. Onde é que você vive?


Dentro de instantes Priscilla Andréa se despede sem beijinhos e, seguramente, já não mais minha fã, não se pode ser fã de tamanho apedeuta. Tenho que superar essa deplorável situação, daqui a pouco metade das mulheres do Rio de Janeiro, ou seja, modelos e estrelas de tevê, vai me odiar, impossível viver desta forma. Mas reajo. Hoje, inicio no boteco um curso de atualização, estou levando até caderno de notas. Logo, logo, minha condição de pária será apenas uma sombra no passado. Meu inexcedível amigo Carlinhos Judeu, especialista no assunto e chefe do grupo de professores, já me adiantou uma frase-padrão, aplicável a quase cem por cento das apresentações: “É uma grande emoção ver você vestida pela primeira vez.” Claro, é só dizer o contrário do que se dizia no meu tempo, como é que eu não tinha pensado nisso antes?


 


O Globo - (Rio de Janeiro - RJ) em 11/01/2004

O Globo - (Rio de Janeiro - RJ) em, 11/01/2004