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Falando no celular

 

Meu avô itaparicano, o coronel Ubaldo Osório, jamais tocou em nada elétrico.

Relutou em instalar energia elétrica em casa e, quando queria acender uma lâmpada, requisitava alguém para acionar o interruptor (também chamado, de “xuíte”, pronúncia local do inglês “switch”) e mantinha distância.

Meu pai, genro dele, que adorava novidades tecnológicas, comprou um aparelho de barbear elétrico e o velho se recusava a entrar no banheiro enquanto aquele instrumento demoníaco estivesse lá dentro, ligado na tomada. E comunicou a sério que, se alguém se ensaiasse para encostá-lo na cara dele, reagiria à bala.

Quando surgiu a televisão e quiseram que ele assistisse, deu para se retirar da sala assim que alguém a ligava.

— Mas, coronel, o senhor vai gostar, aparece gente se mexendo e falando.

— Sei, sei, creio muito — respondia ele, já se levantando e olhando para outro lado. — Um dia destes, eu vejo.

Nunca viu, é claro.

Fico imaginando se não saí um pouco a ele. Devo ter saído, porque, apesar de não sentir medo de acionar xuítes e usar um computador para escrever, sempre encontrei uma certa dificuldade em assimilar novidades técnicas. Além disso, parece que tenho um talento especial para ler a respeito de calamidades de que os outros nunca ouviram falar. Por exemplo, li não sei onde que a ideia do forno de microondas surgiu quando a Marinha americana descobriu que o operador de um equipamento do qual vazavam micro-ondas teve seu diafragma cozido e só não morreu graças a não sei quantas operações e a um tratamento especializadíssimo. Certamente há algo de verdadeiro nessa história, pois o forno de micro-ondas tem porta de segurança porque funciona agitando as moléculas de água presentes nos corpos expostos a elas. Ou seja, considerando-se que o corpo humano tem mais de 70 por cento de água, aquele que se expuser a microondas ficará em pior estado que um sarapatel dormido. Até hoje, como meu avô com a televisão, prefiro sair da cozinha quando ligam o micro-ondas e ajo como os dentistas, que pulam lá para dentro quando fazem uma radiografia. Quem quiser que permaneça por perto, tendo seu diafragma cozinhado, eu espero na sala e não confio nos apitinhos do forno.

Quanto a telefones, contudo, eu me achava bem diferente de meu avô. Não faço como ele, que, quando não tinha jeito e precisava falar no telefone, mantinha o aparelho afastado da cara, alimentando a convicção expressa de que ele explodiria a qualquer momento. Eu também acho que vai explodir, mas falo com tranquilidade, fiado no destino. Entretanto, sou obrigado a reconhecer meu reacionarismo em matéria de celular, pois sou a única pessoa que conheço que não tem um.

Não estou seguro de que sobreviverei dessa forma muito tempo. O número do celular está começando a ficar tão universal que daqui a pouco será como o CPF, hoje exigido até para se tomar um cafezinho. O sujeito que confessa não ter celular é visto como um anormal certamente perigoso. Outro dia, uma repórter me telefonou e me deu essa impressão.

Ela queria fazer uma matéria sobre gente que não tinha celular e não achava ninguém, até que lhe disseram, para sua grande incredulidade, que eu devia ser o último habitante da cidade a não ter um celular. A sensação que me deu, depois da conversa, foi que ela desligou me achando muito estranho e resolvida a, se bater comigo na rua, me evitar como se evita um maluco capaz de qualquer coisa.

Mas, ao contrário do que ela certamente ficou pensando, não tenho ódio ao celular. Simplesmente acho que não preciso dele, como não precisei até hoje. Além disso, ele às vezes me deixa nervoso, por desencadear fenômenos para mim inexplicáveis e, às vezes, um pouco inquietantes.

Por exemplo, por que, assim que o avião para na pista de aterrissagem, todos os passageiros têm a necessidade imediata de falar no celular?

Não dá para esperar nem entrar naquele canudo de aeroporto, porque o pessoal vai tirando a maleta do porta-bagagem e com a outra mão ligando o celular.

Creio que dava para algum sociólogo fazer um trabalho sobre o assunto.

Não seria descabida a tese de que o povo brasileiro padece de uma ancestral carência telefônica, causada pelo tempo em que, para ter um telefone em casa, o sujeito precisava torrar a poupança, tomar financiamento a longo prazo e arrumar um pistolão. Claro que essa conversa de que é para ganhar tempo não tem a menor correspondência na realidade. Para começar, diversos amigos meus passam tanto tempo mexendo com os recursos do celular para ganhar tempo, que não têm mais tempo para nada.

O tempo necessário para aprender a usar recursos para economizar tempo é tanto que lhes toma todas as horas, livres e não livres, e um deles, que é m e i o obsessivo – compulsivo, descobriu que seu celular tem não sei quantos bagulhos para vender em suas mil lojas virtuais e não descansará enquanto não se inteirar de todos, item por item.

Continuo a resistir, mas receio que a luta está perdida. Até porque, como venho descobrindo, não é preciso ter celular para usá-lo. Há muito tempo não permaneço em lugar público nenhum sem ouvir conversas em celulares alheios, algumas das quais dão vontade no ouvinte de pedir que não o envolvam naquela confusão.

Já estive em cabines de elevador cheias onde parecia haver uma assembleia de papagaios, com todo mundo falando ao celular. Já vi gente conversando pelo celular dentro do mesmo restaurante.

Talvez o celular venha a substituir todas as outras formas de comunicação, quem sabe? Espero que haja mercado para redatores de torpedos, vou me qualificar.

O Globo, 2/1/2011