Foi na palavra e com a palavra que o bicho homem saiu de sua normal animalidade para pensar e analisar o mundo que o circundava. Desde o começo da linguagem falada, a palavra entrou na memória e criou um signo específico para ajudar na preservação de coisas antigas. Na base de tudo estava ela, como ainda está. Quanto mais a quantidade real de palavras possamos ter armazenado, estaremos aprendendo a raciocinar e argumentar com mais clareza.
Pesquisas feitas na Inglaterra, na segunda metade do século XX, informaram que Shakespeare utilizou cerca de doze mil palavras em sua obra. Antes de tudo, pergunte-se que vantagem pode haver no fato de um escritor usar esta ou aquela quantidade de palavras? Eu não escolheria a palavra "vantagem" para definir uma estatística desse caráter, mas lembraria que, sendo a palavra o chão da literatura, a vastidão de seu uso é sempre um aspecto a ser considerado.
Na realidade precisamos encher nosso alforje de palavras se queremos entender o mundo e seus habitantes. Estatística feita entre jovens de Londres, que em geral não lêem livros e vivem em "pubs" e lugares de dança, descobriu que eles sabiam apenas trezentas palavras para uso diário, o que na realidade podia afetar sua capacitação de pensar e raciocinar.
Os escritores que, no Brasil, mais palavras usaram em suas obras foram, segundo pesquisas de especialistas, Euclides da Cunha e Machado de Assis. No caso de Euclides, é em "Os Sertões" que vamos encontrar, além da quantidade, uma também enorme diversidade verbal que revela até que ponto pode o talento de um escritor chegar à desabrida utilização de um idioma com a riqueza do nosso. As palavras, busca-as Euclides de modo intenso, selecionando-as, repetindo-as, quase que numa antecipação da técnica repetitiva de Gertrude Stein.
É no estudo analítico de "Os Sertões" - o de Olímpio de Souza Andrade, "História e interpretação de `Os Sertões'" - que vamos encontrar a pesquisa minuciosa dessa qualidade inexcedível de Euclides. Lançado em 1960, saiu esse trabalho agora numa ótima reedição publicada pela Academia Brasileira de Letras.
Juntando substantivos e adjetivos de beleza e às vezes violenta apresentação vocabular, parecia Euclides buscar a perfeição do estilo possível em qualquer língua ao mesmo tempo em que atravessava termos de geologia como se estivesse tratando de problemas de moral. Às vezes provoca um "desvio" descritivo, mas vai-se ver, o que faz é sacudir o leitor com uma ousadia literária que eleva seu livro à categoria da tragédia e do canto épico de um povo.
Descrevendo uma estrada, diz que ela parecia "constrangida entre escarpas", fala de armas e homens que se movimentavam feito ondas insubmissas ou águas bravias de uma corredeira". A natureza, entende-a como se humana fosse e participasse da luta, do avanço e do recuo dos guerreiros. Sobe, com sua linguagem, a sobranceiras paragens não atingidas por outros escritores no Brasil.
Numa prova da riqueza vocabular euclidiana, Olímpio de Souza Andrade enumera 75 modos de Euclides mencionar o arraial de Canudos. Como a transcrição de todos eles ocuparia espaço demasiado, transcrevo apenas alguns e informo que a totalidade dessa lista aparece nas páginas 430 e 431 do livro de Olímpio.
Vejamos: "terra da promissão", "cidade selvagem", "Canaã sagrada", "grei revoltada", "sociedade morta", "Tróia de taipa", "Tebaida turbulenta", "nossa Vendéia", "misteriosa cidadela sertaneja", "arraial intangível", "tapera babilônica", "Cerne de uma nacionalidade", "rocha viva de nossa raça", "monstruoso anfiteatro", "habitáculos em fogo", "sendal de brumas". Bastem-nos esses dezesseis exemplos da lista euclidiana.
Informe-se que há sempre ligação entre o modo como alude a Canudos e o trecho em que se encontra a nova expressão ou, como diz Olímpio de Souza Andrade: "As palavras dificilmente se repetem e sempre nos fazem subir, ou descer, na esteira de uma gradação admirável."
Diante do livro de Olímpio de Souza Andrade, compreende-se o motivo pelo qual "Os Sertões" aparece em primeiro lugar nas listas da grande maioria dos que, em inquéritos de vários tipos, têm opinado sobre o assunto, apresentando o livro de Euclides como o ponto mais alto dos escritos feitos no País.
A nova edição de "História e interpretação de `Os Sertões'", de Olímpio de Souza Andrade, aparece com uma ótima apresentação de Alberto Venâncio Filho, uma introdução de Walnice Nogueira Galvão, que também organizou o volume. O projeto gráfico é de Victor Burton, a produção editorial de Nair Dametto, com ilustração de capa e abertura de Adelmir Martins, assistência editorial de Frederico de Carvalho Gomes e catalogação na fonte da Biblioteca da Academia Brasileira de Letras.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) em 09/03/2004