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Esse Deus brasileiro

 

Semana de cinzas, início de quaresma. Para antigos preceitos religiosos, época de recolhimento e reflexão. Um bom momento para lembrar algo que sempre se prefere ignorar. Não devia ser novidade, mas, que jeito? Melhor dizer de chofre. Desculpem se machuca. Mas o fato é que algum dia vamos ter de encarar. Usar a razão para admitir a realidade e aceitar o fato de que Deus não é brasileiro. Ou é de todos ou de ninguém. Sem preferências ou nepotismo.

É claro que há quem simplesmente ache que Deus não é, não existe. E há também aquele indivíduo que acha que Deus é ele, o ser perfeito que não erra nunca, sempre sabe tudo, mas pode se dar ao luxo de afirmar que nunca soube daquilo que acha que não deveria saber. Ou, pelo menos, é o eleito de Deus, que não o traria até onde veio se não lhe reservasse grandioso destino.

Para acordar aos poucos essa gente delirante, alguns sinais divinos bem que insinuaram que não é bem assim que a banda toca. Perder de 7 x 1 em casa para a Alemanha, por exemplo, devia ter lembrado que não há um povo mais protegido que outros, capaz de vencer planejamento, técnica e talento apenas por se acreditar conterrâneo do Senhor e queridinho da turma lá de cima. Não houve pistolão poderoso que salvasse.

Se Deus não é brasileiro, seu assessor São Pedro não tem por que nos proteger de forma especial. Não dá para contar apenas com ele, que, aliás, tem se revelado bastante incompetente como provedor. Afinal, o Brasil já tem tanta água, é o campeão mundial de água doce. Para que os brasileiros querem também que essa água natural seja bem distribuída, nos lugares onde se concentram, quando não conseguem nem ao menos repartir direito as outras riquezas, que dependem apenas de como eles mesmos distribuem? E tome mais água onde há pouca gente; e mais gente onde há pouca água. A eterna atitude predadora, a urbanização desordenada, o desperdício, a falta de consciência ambiental vêm contribuindo para complicar as coisas.

Ficamos, então, nos autoenganando, sem usar a razão e racionalizar o uso de nossos recursos antes que tenhamos de racioná-los. Confiantes em que Deus é brasileiro e nada de ruim nos acontece. Ingenuamente crendo na carta de Caminha, ao anunciar ao rei de Portugal como ele era venturoso pela descoberta desta terra que o escrivão mal vira e uma semana depois já previa: "Águas são muitas, infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!"

Há anos estamos sofrendo enchentes e secas catastróficas, acompanhadas de mortes, desabrigados, migrações, gente passando necessidade. Mas não conseguimos captar, tratar e armazenar a água das inundações. Custa ter leis que protejam os rios, preservem as matas ciliares, evitem o desmatamento. Quando há leis, falta fiscalização. Quando há fiscais, ou são corrompíveis ou não têm meios de se impor. São Pedro sozinho não dá conta, por mais que suas chaves possam fechar as portas de outro céu sem nuvens.

Dependemos dele, claro. E das chuvas, se são suas. Mas bem que podíamos fazer nossa parte. Primeiro, com este sufoco de agora, ao ter consciência do problema e levá-lo em conta para pressionar governantes. Faltou chuva, sim. Mas há outras carências. Faltou planejamento, pois há muito tempo se sabia dos problemas e não se fez nada. Os que deviam ser responsáveis se limitaram a nos embalar no acalanto do marketing eleitoreiro. Conversa mole para nos fazer dormir. Também faltou gestão, para que obras planejadas saíssem do papel, sem ser apenas objeto de disputa entre concepções diferentes do que se deve fazer. E para recorrer a fontes alternativas de energia, num país cheio de sol e ventos, e com vasto litoral. Faltou ainda destinar recursos às áreas fundamentais de água, saneamento e energia, bem como apoiar a educação e a inovação, a fim de que tecnologias de reaproveitamento ou dessalinização pudessem ser desenvolvidas. Faltou transparência e coragem para explicar a situação a todos. E faltou, como sempre, levar a sério a educação que ajuda a resolver tudo isso, desde informar a população até servir de base a inovações tecnológicas ou explicar que são altos os custos de se ter água e energia, e os preços precisam refletir isso — quando dói no bolso se economiza mais. Estamos virando o celeiro do mundo mas esbanjamos 70% de nossa água na agricultura com técnicas de irrigação que a desperdiçam. Para uma produção de alimentos em que um terço é jogado no lixo. Por que nos achamos nesse direito? Só porque achamos que Deus é brasileiro? Ou porque somos mantidos na ignorância?

Perdemos tempo. Mas se a crise servir para nos acordar, menos mal. Se entendermos que não somos protegidinhos do mandachuva, há esperanças. Mesmo sem a desejada água a se derramar de nuvens carregadas, onde e quando queremos, podemos cair na real. E lembrar Machado de Assis: antes cair das nuvens que de um terceiro andar.

O Globo, 21/02/2015