A Aliança das Civilizações das Nações Unidas realizou a sua primeira reunião da segunda etapa no Rio de Janeiro de 8 a 10 de dezembro. Defrontou-se com o tema em que a discussão da interculturalidade encontra o seu limite de diálogo: o reconhecimento do universal dos Direitos Humanos como caminho para a retomada de uma cultura da paz.
Os atentados do 11 de setembro extremaram uma escalada a dar uma nova dimensão ao terrorismo em nosso tempo e o risco de uma “civilização do medo”. Para além do fanatismo sectário, do profissionalismo da radicalidade, a perspectiva internacional dos últimos anos marca-se por uma confrontação que vai além dos preconceitos, das idéias feitas ou dos estereótipos num recíproco perfil das culturas contemporâneas e da busca da sua diferença.
Está em causa uma desconfiança radical capaz de ameaçar as visões de mundo de nosso tempo e o avanço comum do desenvolvimento da pessoa na sua legítima interculturalidade. A exigência de uma plataforma básica dos Direitos Humanos consiste no objetivo desta Aliança das Civilizações, tal como a reconhece as Nações Unidas, no longo percurso, desde a Declaração Francisco, de 1946, passando pela do Cairo, em 1990, na procura e na afirmação crescente do humanismo pedido pela história contemporânea.
A Aliança na amplitude de seus debates pode se dar conta, ao mesmo tempo, dos riscos de uma visão ideológica de tais direitos, ainda como resquício de uma perspectiva dominadora do Oriente Médio, ou da necessidade de ver esses imperativos avançados não por uma magnanimidade internacional, mas pelo reconhecimento universal de um Estado de Direito.
O indiscutível avanço da consciência contemporânea, tal como discutido em Majorca, Doha, Dakar ou Istambul, reconheceu ao mesmo tempo a importância primeira desse estatuto das culturas como garantia do direito à diferença, em que se reconhecem os povos no seu cometimento nacional e no avanço de sua melhoria coletiva. É tal exigência que conduz a retomada de uma “cultura da paz” à busca da globalização contemporânea a se distinguir das condições hegemônicas na vigência da civilização do novo século.
O terrorismo nasce de um inconsciente coletivo chegado ao abate do outro, tal como uma uniformidade de condições de vida, de modelos econômicos e sociais ferem o imperativo do desenvolvimento na intrínseca diferença de liberdade das visões de mundo dos estilos de vida. Da mesma forma, o recrudescimento dos fundamentalismos identitários já traduz uma condição defensiva daquela hegemonia suscetível de levar a “civilização do medo” ao horizonte das “guerras de religião”.
O programa da Aliança remete-se, pois, a mais aberta e prática das perspectivas, atentando ao nível de conflito internacional inédito trazido pelo 11 de setembro, e de como não é por um mero desejo dos povos que se retoma a cultura da paz, tal como esperada ainda há uma década. Há que buscar as ações afirmativas, o restabelecimento da confiança e, sobretudo, na aposta no jogo amplo das liberdades emq eu a democracia não é um luxo nos países desenvolvidos. Mas na exigência de todo regime que garanta o pluralismo coletivo, desde a sua origem, e a manifestação contínua do dissenso como expressão intrínseca do direito à diferença, no seio de toda a vida coletiva.
A democracia profunda – rematou a Aliança – é o suporte final da democracia, na garantia dos sistemas representativos frente aos plebiscitários, da renovação contínua de mandatos, e da real interdependência de poderes. Reconhecendo o quanto a renovação do diálogo implica também uma busca de novas iniciativas, impõe-se para além dos Estados, despertar a criatividade da sociedade civil em genuínas “ações afirmativas”; atentar, ao lado do avanço constante dos direitos humanos, os da humanidade como tal, na afirmação coletiva da diferença; e do direito à memória social. Não há Aliança das Civilizações sem que a individualidade dos povos se afirme na expressão de seu passado – sem cauções, ou releituras, como as veja o presente. A violência à lembrança coletiva ao lado da luta contra o racismo e o terrorismo, está como começarem a ser trazidos ao Tribunal de Haia. E a integridade dos direitos humanos só pode prosperar – se mantiver a continuidade desta memória social – para o “mea culpa” do passado e a verdadeira prospectiva das novas gerações.
Jornal do Commercio (RJ) 14/12/2007