Não sei se já contei aqui que sou advogado. Advogado, não, formado em direito, porque nunca exerci a profissão, não compareci à formatura e demorei muito em ir buscar o diploma, que por sinal desapareceu num dos muitos triângulos das Bermudas que toda casa tem e onde, ao se guardar um objeto, ele esvanece para sempre. Achar esse diploma, por sinal, é invariavelmente a tarefa urgente da próxima segunda-feira, porque pretendo inscrever-me na OAB uma hora dessas. Não precisa ninguém ficar alarmado, pois meu fito não é exercer a profissão, mas simplesmente pegar uma celazinha especial, no dia em que algum juiz crítico literário achar que fui longe demais, cometi um solecismo hediondo e mereço cana sem fiança. Nunca se sabe quando se vai precisar de uma boa carteirinha da OAB.
No meu tempo, entre as profissões civis, as de homem mesmo eram somente direito, medicina e engenharia. As faculdades de filosofia mal surgiam e eram consideradas estágios para mocinhas casadoiras, e as outras profissões de nível superior eram meramente aceitáveis. Nas três faculdades principais, cultivavam-se as humanidades e havia poetas, escritores, tradutores, pintores e outros praticantes das belas-artes, mas a de direito era a que concentrava mais os intelectuais chatíssimos que todos nós nos empenhávamos em ser. No meu caso, a circunstância agravante era a de que todo mundo na família, a começar por meu pai e minha mãe, que se conheceram na faculdade, era, ou é, bacharel em direito. Meu pai, democrata que só ele, fazia discursos à mesa em que afirmava eloqüentemente minha liberdade absoluta na escolha de profissão, até o dia em que eu disse (só para ver o que acontecia) que queria ser geólogo e ele me botou para fora da mesa.
Aí entrei para direito, onde nunca fui excelente aluno, mas ia tocando a vida e, principalmente, observando o comportamento de mestres e colegas e chegando à conclusão, hoje arraigada em mim, de que a pior praga que se pode rogar é mesmo a que me ensinou um colega mexicano, numa universidade americana onde fiz pós-graduação: “Entre abogados te veas” - que te vejas entre advogados, primor de concisão e perversidade que hesitaria em lançar sobre meu pior inimigo. Naquele tempo, quando o currículo escolar de um bacharel era de cinco anos, o terceiranista podia inscrever-se como solicitador, ou seja, podia praticar todos os atos processuais, a não ser dar entrada à petição inicial do processo. Nunca me inscrevi, é claro, com medo de meu pai mandar algum amigo (ele próprio também não advogava; só ensinava e dava pareceres) subestabelecer uma procuração para mim e eu me ver diante de uma multidão atemorizante de procuradores, escrivães, juízes, desembargadores, oficiais de justiça, estampilhas, carimbos e todo aquele universo intimidador, a tal ponto que até hoje tremo ao assinar documentos e sou acometido por pavores súbitos em repartições públicas (e bancos também, mas isso já é outra conversa).
E, também naquele tempo, o Brasil era conhecido, não muito ufanamente, como a República dos Bacharéis. E era mesmo. Bacharel era doutor e com doutor não se brincava. Tudo se resolvia - o que não deixa de ser um pouco verdade, ainda - com uma lei. Durante as diversas batalhas para combater a inflação que minhas relativamente poucas décadas de existência experimentaram, cansei de testemunhar atos governamentais que se limitavam a pouco mais do que decretar que a inflação era um crime, cassar-lhe os direitos políticos e pô-la em prisão preventiva. Até que aos poucos veio, qual vagalhão emerso do fojo do Pai Oceano, a Era dos Economistas. Os bacharéis perderam bastante prestígio, mas foi um susto secundário, porque estamos de volta, eis que os economistas no poder são aliados, às vezes indistinguíveis, dos bacharéis.
E não só isso. A nossa famosa propensão para fazer tudo igualzinho aos americanos (com exceção de se dar bem na vida, mas não se pode querer tudo neste mundo) reforça a onipresença dos advogados outra vez. Leio aqui, na cadeira de barbearia em que o Leo, meu barbeiro, se empenha em me fazer crer que ainda tenho cabelo, que agora há contratos de namoro. O negócio está apenas começando, mas vai pegar, sem dúvida nenhuma. Para o(a) sujeito(a) namorar, vai ter de assinar uns papéis, a fim de prevenir determinadas situações trazidas pela vida hodierna. Sério mesmo, diz aqui na revista. Se, por exemplo, os namorados resolvem morar no mesmo domicílio, devem antes estabelecer as normas que considerem importantes, desde, imagino, o uso das toalhas à posição do rolo de papel higiênico em seu pendurador.
Prevejo polêmicas acerbas sobre a distinção entre atos práticos e consensuais do namoro e aquilo que pode ser considerado intolerável assédio sexual. E para os que dormem juntos? Haverá o jus babandi? O jus roncandi? Quiçá o jus petandi? (Não traduzo: quem quiser traduza, é o título de um dos muitíssimos livros estudados em Paris por Gargantua: “Ars decente petandi in societate”.) Para não falar em que mesmo os casamentos de papel passado, outrora tão singelos, deverão cada vez mais incluir pactos anteriores, ou seja, mais necessidade de advogado. Até as bulas de remédio, antes contando entre elas com peças literariamente valiosas, são hoje escritas por advogados antecipando processos contra os laboratórios. O sujeito pega um remédio para caspa e lê na bula: “Uma paciente em Kansas desenvolveu bastos bigodes louros com o uso do produto. Três pacientes no Missouri pegaram frieira no dedão. Um grupo de mulheres estudado em Oregon passou a ter crises de riso incontroláveis em qualquer ocasião pública solene. Um motorista de caminhão em Illinois agora só espirra em flocos.” E por aí vai, é só observar. Resta o consolo macroeconômico de que o já amplíssimo mercado para advogados e despachantes em nosso país só tende a ampliar-se e, daqui a pouco, a maneira mais fácil e legalmente segura de marcar um encontro amoroso será por despachante. Estamos ficando cada dia mais modernos e até o americano tem muito o que aprender aqui.
O Globo (Rio de Janeiro - RJ) em 26/05/2002