Um inteligente leitor desta coluna escreve-nos para declarar que a ele e a muita gente a imposição a todos os usuários do idioma de uma reforma ou de um acordo ortográfico proposto por um pequeno grupo de pessoas significa “uma atitude de extrema arrogância”.
Para esses usuários, o pequeno grupo de especialistas não tem representatividade, por mais representativos que esses especialistas se considerem, para falar em nome de tantos milhões de pessoas. “Não nos foi oferecido qualquer veículo para que expressássemos previamente nossa opinião a favor ou contra a reforma; portanto, não autorizamos quem quer que seja a falar por nós”. Esse tem sido, com pequenas variantes, o discurso da maioria das pessoas que se tem insurgido contra reformas ou acordos ortográficos propostos desde sempre, pois as queixas não são de hoje, nem de ontem.
O idioma é, sem dúvida, patrimônio de todos, a todos interessa, e, por isso, qualquer alteração na maneira de representar as palavras na escrita atinge todos os usuários. Sabemos todos que um sistema ortográfico resulta de uma convenção; mas de uma convenção especial, a que não tem faltado uma forte dose de cientificidade, aliada a também forte dose de hábitos históricos e de uma tradição muito especial ao idioma, aspectos que fogem ao conhecimento relativo comum das pessoas. Entrevistando D.Carolina Michaëlis de Vasconcelos, logo após a reforma ortográfica de 1911, perguntou o repórter à insigne maestra dos estudos linguísticos e filológicos a quem competia a tarefa de uma reforma ortográfica. A resposta veio imediata:“ Evidentemente aos profissionais que se ocupam cientificamente de línguas, sobretudo das neolatinas, e em especial do idioma pátrio - quer pertençam à Academia, quer não” (‘Lições de Filologia Portuguesa’, pág.106).
Ouvem-se vozes e leem-se artigos hoje de representativos escritores portugueses a condenar o já oficial Acordo Ortográfico de 1990, com o mesmo discurso panfletário do nosso inteligente leitor, mas com pouca ou nenhuma argumentação doutrinária. Infelizmente, hoje, são menos competentes do que foi o sempre notável Fernando Pessoa que, em folhas que ficaram inéditas por muitos anos, revela bom conhecimento técnico das bases da reforma ortográfica de 1911, folhas que foram recolhidas por Luísa Medeiros, com o título ‘A Língua Portuguesa’, editado por Assírio & Alvim, Lisboa, 1997. Um ponto que consideramos essencial é a distinção que faz entre ortografia no seu aspecto cultural e no seu aspecto social: “Sendo a cultura um produto do indivíduo, cada indivíduo tem - salvo casos episódicos de força maior - o dever cultural de escrever na ortografia que achar melhor, visto que essa ortografia é a expressão de esse pensamento, que esse indivíduo tem o dever social de fazer a propaganda com a força de pensamento que nele caiba, de tal ortografia. Resulta também, como provei, que a ortografia, sendo um fenômeno cultural, é puramente individual, não tendo o Estado coisa alguma com ela (...)”(pág. 30).
Continuando na sua distinção entre o aspecto cultural e o social da ortografia, esclarece Pessoa: “Cessa aqui, porém, o que é puramente o meu dever cultural; com a publicação do meu escrito estou já, simultaneamente, em duas esferas - a cultural e a social: na cultural pelo conteúdo do meu escrito; na social pela ação,atual ou possível, sobre o ambiente (...). O único efeito presumidamente prejudicial que estas divergências ortográficas podem ter é o de estabelecer confusão no público. (...)Onde essas divergências ortográficas produziriam já um efeito prejudicial, e portanto imoral, é se o Estado admitisse essa divergência em seus documentos e publicações, e, derivadamente, a consentisse nas escolas [A SEU CARGO]. No primeiro caso haveria um fermento de indisciplina, que nenhum governo pode ou deve permitir. No segundo haveria, além desse mesmo fermento, de desnortear crianças, incapazes, por o serem, de refletir ou analisar esses problemas”.( pág.23-25)
Este foi o caminho de todas as propostas ortográficas em vigor nas línguas de cultura: um grupo de especialistas propõe e o governo sanciona. A língua portuguesa está neste grupo. Tem sido o propósito desta coluna tentar mostrar a seus leitores o melhor caminho dos assuntos tratados, à luz da lição de nossos guias nacionais e estrangeiros.[CONTINUA]
O Dia (RJ), 6/11/2011