Homem sempre teve medo de mulher, mas eu acho que no meu tempo tinha mais. As relações entre os sexos eram bem mais complicadas e cheias de normas e preceitos nem sempre coerentes e isso, junto com o medo, contribuía para uma formidolosa coleção de mitos e histórias sobre o eterno feminino – pois, naquela época, não só se falava no sexo frágil, como no eterno feminino. A história que mais provocava calafrios e pesadelos era a da broxada. Um certo amigo, cujo nome a caridade mandava esquecer, conseguira, depois de meses de trabalho insano, seduzir uma certa senhora e levá-la a um encontro numa garçonnière, pois que na época não havia motéis, os hotéis exigiam certidão de casamento para casais e os bem de vida mantinham apartamentos para seus encontros galantes.
Tudo certo, amanhece devagar o dia e vem um ameno fim de tarde outonal. Parece que nunca chega a hora do pecado e, o coração aos pulos, esse certo amigo entra cedo no ninho de amor cuja chave tomara emprestada ao dono. Angustiada espera, palpitações, fôlego curto, espiadas em falso pelo olho mágico, ela se atrasava, será que não viria? Veio, sim, e que maravilha, que linda, que deslumbrante, que corpo escultural, que deusa da luxúria, por trás de aparência tão recatada! Mas, claro, com suor porejando e lágrimas quase lhe brotando dos olhos, esse certo amigo – adivinhou – broxou irremediavelmente, não houve jeito. E vocês sabem o que ela disse a ele?
- Pensei que tinha vindo para a cama com um homem – disse a desalmada, com um olhar de desdém arrasador, enquanto, dando uma rabanada como se a mostrar a ele o que sua duvidosa virilidade estava perdendo, pegava a roupa e se vestia devagar, para depois recompor rapidamente a maquilagem e, com um risinho entre mofa e compaixão, dar um “tchau, garotinho, te cuida” e sair para nunca mais ter olhos para ele que não os do desprezo.
Ninguém fazia por menos e esse amigo broxa, quase sempre coberto de opróbrio e à beira do suicídio, frequentava todas as assombradas conversas sobre os mistérios femininos. As mulheres oscilavam entre as santas – normalmente a santa mãezinha de cada um – e as serpentes de escritores então muito lidos pelos ousados, como Vargas Villa e Pittigrilli, este autor da inquietantíssima frase “as únicas mulheres sérias são minha mãe e a mãe do leitor”. De vez em quando, circulava uma novidade, que costumava ganhar voga durante algum tempo e depois sumir. Mulher que fica preocupada demais em ajeitar a saia ou o decote, para não deixar nada aparecer – não sei se vocês sabiam -, essa mulher, no mais das vezes, é da pá virada e, com aquela carinha sonsa, só pensa em safadagem. Já as mais largadonas, mais descuidadas, podem até proporcionar umas prévias interessantes, mas não são tão generosas, quando se trata de chegar aos finalmentes. Quanto às casadas, uma das orientações da sabedoria vigente era ver se ela usava demais as palavras “meu marido”. Aconselhava-se desconfiar das casadas que ficam falando “meu marido” para lá e para cá. E também se cultivava a ciência baseada em partes do corpo – mulher de nariz grande, mulher de tornozelo fino, mulher de covinha no queixo, mulher da saboneteira saliente -, uma tipologia complexa que nunca consegui dominar, como, aliás, este assunto como um todo.
Havia sempre os repositórios de sabedoria, os que uniam à experiência a sagacidade científica. Ao longo da existência, fui abastecido por diversos detentores de verdades que os demais desconheciam. Em relação à broxada, o protagonista era sempre um amigo do narrador da história. Em relação a outras experiências, notadamente as positivas,o protagonista costumava ser, modestamente, o narrador, como, por exemplo, no caso de mulheres enlouquecidas. Outra das características daquele tempo, que imagino perdida atualmente, é que as mulheres enlouqueciam. Antigamente, não sei se é impressão minha, mulheres enlouquecidas apareciam muito mais, nos papos masculinos.
Creio que o enlouquecimento das mulheres se devia a uma noção meio radical da fisiologia feminina. Normalmente bem comportadas, equilibradas e até capazes de dominar qualquer impulso menos nobre, devido à natureza basicamente virtuosa do eterno feminino, as mulheres, não obstante, tinham sempre uma vulnerabilidade: podiam ficar enlouquecidas. Havia diversas teses sobre o que deflagrava esse estado. Lembro de um ou dois sabichões que defendiam a tese de dizer “palavras alucinantes”, garantidas para enlouquecer qualquer mulher, só que eles nunca revelavam que palavras alucinantes eram essas. Teve outro que defendia a tese de que a mulher enlouquecia quando lhe enfiavam a língua numa orelha, mas eu nunca soube de nenhuma mulher confessando enlouquecer com uma babada na orelha, a não ser talvez de raiva.
O carnaval era outro fator de enlouquecimento de mulheres. Segundo alguns, nunca a gente, era tiro e queda para certas mulheres, não precisava mais nada. A maior parte, contudo, tinha de ser enlouquecida suplementarmente e para isso havia o lança-perfume. Devo confessar que tentei enlouquecer uma ou duas mulheres à base do lança-perfume, mas receio que ou elas tinham alguma imunidade desconhecida da ciência ou não foi uma boa ideia eu cheirar também – e apagar, é claro, para jamais tentar outra vez. Cheguei a recusar participar de uma expedição carnavalesca de cheiradores de lança-perfume que planejavam enlouquecer dezenas de mulheres, tipo orgia de Calígula mesmo. No começo, fiquei meio arrependido de ter recusado, mas depois um amigo meu que participou me contou o que se passou.
- Mulher mesmo não apareceu nenhuma – admitiu ele. – Mas espere até eu lhe contar as histórias de mulher enlouquecida que eu ouvi.
O Globo, 6/3/2011