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Em perigos e guerras esforçado

 

Algo me diz que já escrevi um ou mais textos com o título acima, talvez publicados aqui mesmo. Sabemos que Algo mente muito, mas é também freqüente que lhe assista razão, como suspeito ocorrer no presente caso. Disponho da desculpa meio esfarrapada de que são palavras de Camões e, portanto, sujeitas a freqüentes repetições, mas estaria mentindo se a usasse, porque o fato é que não me lembro e, assim, devo desculpas ao leitorado, que pelo menos tem o direito de não se defrontar, volta e meia, com a mesma coisa. Mas creio que a repetição se limita ao título. Bem verdade que, como vou fazer em seguida, falarei de novo na malha médica que me sitia. Mas é que tenho novidades. Não é que, inopinadamente, a dita malha médica acaba de aumentar? É o que estou lhes dizendo; sei que parece impossível, mas é a pura realidade. Estou agora de fisiatra e fisioterapeuta. Meu joelho esquerdo pifou e o direito parece disposto a seguir-lhe o exemplo. Ainda consigo andar, mas com a elegância de um pato caquético e sob a ameaça, em minha cabeça sempre delirante, de que ambos despenquem enquanto eu atravesso uma rua aqui perto de casa chamada pelos mais íntimos de Roleta Russa, dado o empenho com que os motoristas dos carros que nela entram procuram atropelar os passantes.


A versão oficial é de que, havendo eu negligenciado minhas caminhadas no calçadão e me permitido transcender meu peso ideal (ideal lá deles) em cerca de quinze quilos, causei a ruína de meus já não tão famosos joelhos, desde o dia em que, defendendo as cores do Flamenguinho do Rio Vermelho, em Salvador (eu sou Vasco, mas já joguei pelo Flamenguinho do Rio Vermelho, o profissionalismo leva a essas coisas), na condição de beque direito, tomei uma pisada de Sibaúna, o ponta-esquerda adversário, que me destroncou o joelho, agora vejo que pelo resto da vida.


Pode ser, mas minha versão me parece mais aceitável. De tanto enfrentar o medo que não cessam de nos incutir por todos os lados, não só eu, como vários dos meus concidadãos e concidadãs, batemos com tal assiduidade os trêmulos joelhos que acabamos por arruiná-los. Ultimamente, a situação tem se agravado, pois, somados ao medo urbano, ao medo da reforma da Previdência e ao medo, ainda maior, da reforma fiscal - depois da qual nos tirarão não mais as calças, que já se foram, mas as cuecas e calcinhas, a não ser que sejamos banqueiros - vem a situação da Receita Federal, que uma hora destas termina por revelar-se mais particular do que propriamente federal. Não há joelho que agüente, principalmente joelho de jornalista.


Quando me iniciei nesta honrosa carreira, só me enumeraram muito vagamente os perigos da profissão. No tempo em que eu vivia em redações, contavam-se histórias distantes de jornalistas obrigados a comer um exemplar de seu próprio jornal por algum coronel descontente, ou uma surra ou outra em quem fizesse uma denúncia contra interesses poderosos. Até aí, tudo bem, aqui no nosso Brasil. Depois, aos poucos, é que fui me dando conta de que realmente o jornalismo é das profissões reconhecidamente mais perigosas do mundo e a toda hora morre um, seja porque publicou algo que não devia, seja porque estava fazendo uma cobertura arriscada, como uma guerra ou uma revolução. É tarde para reconhecer que meu pai estava certíssimo, quando queria que eu fosse tabelião. A insensatez da juventude leva a esse tipo de coisa e suponho que ainda devo agradecer por arrependimento não matar.


Hoje, claro, não tem mais jeito. Toda semana, um amigo me chama a atenção para a possibilidade de que os envolvidos em alguma atividade de que falei mal não gostem da história e tomem providências meio radicais. No começo eu não ligava, mas não só a imprensa, entre nós, é a culpada de tudo o que de mau denuncia, como a cada dia se agregam novos escolhos a tão dificultosa navegação. Agora, por exemplo, sou advertido de que há danos morais que posso infligir a qualquer um, sem ter a menor idéia do que estou praticando.


Os brasileiros, noticia-se, descobriram os danos morais e buscam reparações na Justiça, sempre que se consideram moralmente danificados.


Vejam bem, não sou contra a punição ou reparação de danos morais. Sou contra é a extensão do conceito da maneira ampla com que parece estar se espalhando. Se alguma pessoa, jornalista ou não, ofende a honra ou a dignidade de outra, de maneira inequívoca e clara, deve pagar por isso. O problema é a definição do que é inequívoco ou claro nesses casos e essa definição ficar sempre na dependência da visão subjetiva de alguma autoridade, como tudo indica que ficará. Recordo uma vez, por exemplo, em que fui cair na besteira de dizer que não gosto de pombos (retiro o que disse - cartas ao editor, por caridade) e quase me lincham. Agora, se repetir o que falei, posso danificar moralmente um, com perdão da palavra, columbófilo.


A solução mais fácil seria publicar jornais em branco, ou com grandes espaços vazios, como no tempo da censura. Bastava providenciar um carimbo impresso com dizeres mais ou menos como "deixamos de publicar uma notícia sobre isso ou aquilo para não causar danos morais aos que se considerarem atingidos". Mas nem jornais nem jornalistas podem fazer isso, de forma que temos de encarar mais esse risco profissional. Mas também vamos querer tudo a que temos direito. Como, por exemplo, a aprovação, em regime de urgência e com alguns acréscimos, do projeto de lei da deputada baiana Nice Lobão que obriga as empresas jornalísticas a fornecer coletes à prova de balas aos profissionais em missões perigosas. Aliás, nem é preciso que ele seja votado pelo Congresso, porque acabam de nos comunicar que há dispositivos constitucionais não votados, embora em vigor. Se pode com a Constituição, por que não pode com um singelo projeto? Quero o meu colete logo, para eventuais desafetos letais, e também um habeas corpus preventivo e um atestado de pobreza, para encarar não só danos físicos quanto morais. Acho que meu joelho está piorando.




O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 12/10/2003

O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em, 12/10/2003