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Em pé de guerra

 

A violência virtual que devastou as relações entre as pessoas durante a campanha eleitoral acendeu um sinal vermelho. O legado é de perplexidade. Novas aflições somaram-se ao inventário de questões sobre a democracia contemporânea: a internet está ampliando a democracia? Ou revelando suas zonas de sombra? Ou as duas coisas?

Essa violência não teve origem na internet. Vem de longe, são os resquícios de uma atitude sectária em que o adversário é inimigo. Há tempos sobe a temperatura dos pertencimentos tribais. Um jogo de futebol pode oferecer, em carne e osso, o mesmo espetáculo de boçalidade contagiosa. Uma torcida organizada é uma tribo em pé de guerra. Partidos políticos também podem ser.

Como é da natureza da internet ser um potente amplificador, o ódio que caiu na rede fez-se epidêmico. Nos choques de opinião a própria opinião se perdeu. Sobraram cacos de insultos, lixo de calúnias, destroços de um estilo black bloc virtual. Quem queria discutir ideias foi se dispersando e saindo de cena como os manifestantes das ruas.

Se a internet, o que é verdade, é um rebatimento do mundo real, se os ódios e as crueldades que veicula são trazidos por quem a utiliza, esse rebatimento se dá como se estivéssemos no começo dos tempos, antes que séculos de civilização construíssem regras que domesticaram a fera que nasce conosco. Espelho de circo, deformante, o que a mais moderna tecnologia está espelhando somos nós, sim, mas na idade da pedra.

A violência digital alimenta-se da cumplicidade entre a identidade impalpável e a impunidade. A população do mundo virtual, porque incorpórea, pode ser ou não ser, ser muitos, quantas múltiplas vidas adote, ser alguém que não se é. A apropriação e a multiplicação das identidades propiciam a eclosão de delírios. Permitem não ser responsável pelo que se diz. Na vida real agredir alguém exige suportar o sofrimento e a reação do outro. No ciberespaço tudo é indolor e sem riscos. Vigora o direito ao crime sem autor.

Mesmo se o Brasil já produziu um aplaudido marco regulatório da internet, que consumiu cinco anos de debates, consultas e audiências públicas, a capacidade de fazer cumprir essa lei ainda é reduzida. O que é crime na vida real também é crime na internet. A realidade das punições é outra história. As rotas de fuga são inéditas, os esconderijos também. O mundo virtual ainda é um mundo desgovernado, sem superego e sem tabu.

Chegamos a essa terra de ninguém como se fora um continente encantado onde a possibilidade de informação e de expressão seria sem limites e sem dono. Logo os monstros ocultos no anonimato foram saindo das sombras e dele fizeram uma casa mal assombrada.

Apareceram os que assaltam contas bancárias, os que roubam reputações, os pedófilos e os terroristas. E as empresas que, violando nossa intimidade com um olhar orwelliano, surrupiam nossos dados e nos revendem no mercado de qualquer coisa.

Apareceram agora os donos da verdade, os profetas da intolerância que, qualquer que seja sua cor política, são, por definição, autoritários. O site do PT traz um exemplo lapidar desse pensamento autoritário. Convoca a “militância às armas” para combater com argumentos “a ignorância” de quem discorda de seu credo. Como se fôssemos 51 milhões de ignorantes a serem convertidos pela “militância” que, pelo visto, nada tem a aprender e se prepara para uma cruzada. A retórica guerreira não arrefeceu. Quando virá o auto da fé?

Se a democracia, por um lado, se consolidou — quem temia o desinteresse foi surpreendido pela participação — por outro lado a banalização da violência interpessoal e da intolerância política que se retroalimentam e que a internet espelhou está se alastrando. Não desaparecerá por si mesma. A rede que se propunha aproximar as pessoas, ao contrário afastou-as.

O vírus da violência, ora mais, ora menos agressivo, está circulando na sociedade. E a imunidade baixou muito nessas eleições. Saído não se sabe de que baú de velharias apareceu em uma manifestação na Avenida Paulista um cartaz falando em golpe militar, palavras malditas que há quarenta anos não ouvíamos.

A oposição, pela voz de Aécio Neves, repeliu qualquer proximidade com esses fantasmas de um passado trágico, traçando um cordão sanitário que de pronto esteriliza qualquer contágio.

O ódio e a violência são corrosivos. A democracia contemporânea se fortalece e se afirma no trabalho que a sociedade faz sobre si mesma, defendendo a liberdade e combatendo em todos os espaços, reais ou virtuais, seus espasmos de selvageria.

O Globo, 08/11/2014