A leitura das reflexões de Fernando Pessoa transcritas no artigo anterior marca bem as características da ortografia quanto à sua natureza cultural e à social. Pelo aspecto cultural, podemos grafar as palavras segundo nossa vontade ou prazer estético, ou ainda anseios expressivos. Essa liberdade não se limita à ortografia; estende-se a todo o material do idioma: a pontuação, ao uso de maiúsculas e minúsculas, à formação de palavras, ao vocabulário, à sintaxe.
Estão diante de nossos olhos as aventuras dos escritores, dos marqueteiros, dos usuários em geral. Os simbolistas são bem um exemplo dessa liberdade; preferiam, por exemplo, escrever ‘ lagryma’, com ‘y’, porque o formato da letra melhor lembrava o rolar da lágrima pela face. Se um sistema ortográfico resultasse da consulta aos usuários certamente desse filão cultural viriam as sugestões, e as grafias seriam um colossal fermento de indisciplina. Daí o aspecto social da língua e da ortografia preferir as sugestões dos especialistas de que falara D.Carolina. E essa modalidade, disciplinada, é sancionada pelo Governo que, como indivíduo, não pode nem deve admitir o fermento da indisciplina nos seus documentos, nas escolas sob sua ingerência e nas crianças sob sua proteção. Por isso, não é exatamente correto dizer simplesmente que as reformas ortográficas vêm de cima para baixo, ditatorialmente.
A providencial distinção feita por Fernando Pessoa entre o aspecto cultural e o social da ortografia já vinha cedo presente na lição de bons linguistas do passado. Uma voz autorizada de um dos melhores do século XIX– Gaston Paris – podemos ler no lúcido prefácio que escreveu para a “Grammaire raisonnée de la langue française”, de Léon Clédat, saída em 1894 (citamos pela 5ª ed.de 1896), em que declara que os escritores não são bons conselheiros de um sistema ortográfico, porque têm com as palavras uma relação muito especial de artesanato literário, isto é, do aspecto cultural de que nos fala Pessoa.
Daí as desarrazoadas críticas que desde algum tempo bons escritores na sua seara fazem ao Acordo de 1990, esquecendo- se de que esta versão está muito mais próxima dos hábitos portugueses e africanos de 1945 que dos hábitos brasileiros de 1943. Uma das últimas críticas que lemos pertence a Nuno Pacheco, diretor do importante jornal lisboeta “Público”; no artigo ‘Omens sem h’ reclama da tendência de simplificação ortográfica, esquecendo-se de que o fato decorre de um movimento iniciado no século 19 que envolveu pessoas, intelectuais, linguistas, escritores e professores, na Europa e nos Estados Unidos, para diminuir as dificuldades da representação escrita. Por isso, engana-se o nobre diretor ao dar a entender que a simplificação partiu de brasileiros para portugueses. Lembra ainda que mesmo no Brasil não fomos fiéis à onda simplificadora, porque grafamos ‘Bahia’, além do ‘Assumpção’ do presidente Itamar. Ora, não percebeu que essas exceções constituem nomes próprios, cuja fidelidade ao registro oficial sempre foi garantida. Houve na sua terra uma ilustre professora ‘Paxeco’...
Mais uma vez Fernando Pessoa tem o que ensinar. Lembremo-nos de que Pessoa contestava o critério simplificador da reforma de 1911, que considerava um ato impatriótico:“Foi o ato imoral e impolítico. Foi imoral porque se dispôs de uma coisa de que não éramosos únicos donos. A língua, e portanto, a ortografia portuguesa é conjunta de Portugal e do Brasil. Se, como era nossa obrigação,o houvéssemos consultado, haveríamos, pelo menos, limitado na reforma. O Brasil, apegado como era e é à ortografia antiga, ter-nos-ia desaconselhado dela. E, fazendo-a, fomos impolíticos. Praticamos um ato que, à parte ser desnecessário, ou não urgente, foi abrir uma cisão cultural entre nós e o Brasil”. Para Pessoa, os maus ventos vieram da bela terra do Sr.Diretor.