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Elis, o fino da bossa

 

O médico examinou o menino João Marcelo Bôscoli e o desenganou. Tem uma doença rara, ligada à lactose, e não há recursos da medicina para salvá-lo. A mãe, Elis Regina, não se conformou com o veredito. Pegou o filho no colo e passou a noite cantando para ele. No dia seguinte, quando o médico voltou, não entendeu nada. Quando soube do que se passara – e ele estava melhor – diagnosticou que a voz salvara a vida do filho. Foi um milagre.

Pode estar aqui a síntese perfeita do que Elis representou para a música brasileira, da qual é considerada a maior intérprete de todos os tempos. Começou a sua fulgurante carreira aos 14 anos de idade, em Porto Alegre, no Clube do Guri. Veio para o Rio na década de 60, trazida por Carlos Imperial, que era um conhecido caçador de talentos. Foi então que tive o prazer de entrevistá-la para a revista “Manchete”, em 1964, quando ela contou parte dos seu sonhos. Queria ser cantora, mas não desprezava o curso de formação de professores que havia feito em sua terra. “Quem sabe, posso fazer as duas coisas?” 

O seu destino estava traçado. Cantou no “Beco das Garrafas”, no Rio, e logo depois foi para São Paulo, onde brilhou no programa “O fino da bossa”, já então dirigida pelo produtor e meu amigo Ronaldo Bôscoli, ao lado de Luís Carlos Miele. Abandonou o cabelo estilo “bolo de noiva” e foi convencida a adotar o modelo “Joãozinho”, bem curto, com o qual se consagrou. A influência de Bôscoli foi tão forte que acabaou se apaixonando por ele. Casaram, tiveram o filho João Marcelo, hoje produtor musical, mas foi uma vida de muitas brigas. Dois temperamentos difíceis e houve a separação. Elis ficou com muita raiva de Ronaldo e impediu que ele visse o filho.

Foi aí que entrei mais uma vez na vida deles. Um dia, o Ronaldo me liga e pergunta se conheço um determinado Juiz de Família. Era meu amigo de infância. “Preciso que ele autorize as visitas ao meu filho, estou morrendo de saudade.” Falei com o amigo, que foi sensível ao meu apelo. Consegui aplacar a ira da grande cantora que, enquanto isso, acumulava prêmios em programas de rádio e televisão, com sucessos como “Madalena”, “O Bêbado e a Equilibrista” e “Águas de Março”.

Jobim, Tim Maia, Ivan Lins, Edu Lobo, Jair Rodrigues e outros astros. Todos elogiavam a sua incrível afinação, como demonstrou cantando “Arrastão”, em 1965, no Festival da TV Excelsior. Variou da bossa nova ao samba, ao rock e ao jazz, com estilo nitidamente influenciado pela grande Angela Maria.

Elis não foi longe. Morreu aos 36 anos de idade, em São Paulo, diante da comoção nacional. Deixou três filhos e uma legião de aficionados, que agora curtem no Rio de Janeiro ( Teatro Oi Casa Grande ), pela poderosa voz de Laila Garin, toda a felicidade e amor, a melancolia e o mistério da nossa maior intérprete.

Jornal do Commercio - RJ, 24/01/2014