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É preciso ter coragem

 

A universidade brasileira mal chegou aos 80 anos de conturbada existência. Ela deve competir com outras, em diferentes partes do mundo, que têm cinco ou seis séculos. Tradição pesa - e muito - nesse caso.


Ainda sofrível, mas com visíveis ilhas de excelência, ela chegou a 1968, pedindo uma reforma consistente. Foi feita ao final do ano, um mês antes do malfadado AI-5. Na distância do tempo, hoje pode-se concluir que havia uma furibunda campanha contra a universidade, na época predominantemente pública, e em particular atingindo os catedráticos. Seriam figuras ditatoriais, fechadas, distantes dos seus alunos, gozando de uma liberdade excessiva. Era preciso acabar com eles, em nome de uma discutível democratização, além de adotar a palavra mágica: departamentalização. Isso acabaria com todas as mazelas do ensino superior. Não há quem tenha coragem de dizer que isso aconteceu.


Meio século depois, com o mundo completamente transformado, até mesmo em função do desenvolvimento científico e tecnológico, chegamos às vésperas de uma outra reforma universitária. Agora, a crítica é ao corporativismo, à falta de verbas, à avaliação para unir, ao assembleísmo, à expansão desordenada de ensino privado, à inadimplência estimulada pelo governo, às vagas abundantes (sobram 37% anuais). A educação pública superior representa somente 17% do total, está sucateada (muita gente boa não gosta dessa palavra, sobretudo porque incomoda) e ainda há clarões de esperança na bem-sucedida pós-graduação, apesar dos pesares. Com que transformações a nossa geração passará à História, na reforma universitária de 2004? Faremos uma eficiente revisão de conceitos? O vestibular acaba ou não acaba? Se for, já vai tarde.


É preciso ter coragem de proclamar que a politização da universidade (política partidária) foi também um fator negativo. Não é ao mérito que se presta reverência, mas à demagogia, com raras exceções. Faz-se na universidade o que não se faz nos partidos. A briga por posições é muito mais animada do que a discussão em torno das cotas raciais ou da inclusão social. Essa história ainda precisa ser bem explicada porque dados oficiais comprovam que a metade dos alunos das universidades públicas provém de escolas médias igualmente públicas. Onde se configura, então, o criticado preconceito? O que existe na sociedade brasileira é uma enorme discriminação social. Isso é que precisa ser combatido. A melhor distribuição de riqueza é que faria justiça.


Temos o problema dos recursos. Paixão pura na discussão. Quem é contra oferecer melhores condições de vida à universidade? Em grandes centros, visíveis a olho nu, vemos instalações precárias, professores descontentes, banheiros sujos, laboratórios sem material, equipamentos ultrapassados, teto caindo, paredes rachadas - isso tudo não é ficção. O indivíduo não pode se sentir bem freqüentando esse tipo de ambiente. Fora a ausência de segurança, o que impede os cursos noturnos, onde há um fabuloso capital escondido. Não é tema para a discussão que se inicia?


Na pauta, é preciso colocar ênfase no debate sobre os currículos. Modernizá-los é uma necessidade, bem assim a valorização da língua portuguesa. E das bibliotecas. De que adianta anunciar a existência de 30 mil livros se a maioria não tem nada a ver com os cursos ministrados? Ou se são obras desgastadas pelo tempo, em relação ao seu conteúdo? Examinar uma biblioteca para aprovar um curso ou reconhecê-lo é tarefa demorada, que exige dos especialistas um conhecimento atualizado do seu campo de atuação. Se não for assim, vira um mero exercício aritmético. Sobre laboratórios, nem é bom falar.


Com vistas à reforma, deve-se retomar cuidados prioritários com a educação física. Instalações compatíveis e estímulos de toda natureza. O problema não é vencer nas Olimpíadas, que isso ocorre naturalmente, mas oferecer aos jovens condições de uma prática essencial na sua idade. Isso virou brincadeira, com a exclusão da matéria ou a sua oferta bem chinfrim, também consideradas as exceções existentes.


E o que dizer da educação à distância? Somos bombardeados pela propaganda estrangeira. É curiosa a nossa reação: ficamos envergonhados. Temos medo de pilantragem no uso desse extraordinário recurso, hoje em pleno uso em nações desenvolvidas.


Não somos sérios? Não somos competentes? Nada disso, houve uma brutal leniência oficial (atenção, ministro Tarso Genro) e nossos jovens são privados de conhecimentos atualizados, por isso essenciais. Temos uma boa oportunidade para reverter esse quadro, também reformando a estrutura universitária, para reforçar suas relações com a sociedade. Como deseja o novo ministro da Educação.




O Globo (Rio de Janeiro - RJ) em 16/02/2004

O Globo (Rio de Janeiro - RJ) em, 16/02/2004