Com ele me encontrei há 51 anos, quando o filósofo inglês se aproximava dos 80. Foi em Estocolmo, nas vésperas do dia em que Russell recebeu o Prêmio Nobel. Eu fora convidado pelo Comitê Nobel para assistir à entrega, que seria feita a dois escritores: William Faulkner, por 1949, e Russell, por 1950. A cerimônia Nobel ocorre sempre a 10 de dezembro, data da morte de Alfred Nobel, o criador do prêmio.
Bertrand Russell era baixo, magro, de cabelos inteiramente brancos, passo firme. Fiquei espantado com o brilho que possuía nos olhos. Era como se pensasse com eles. Ao falar, suas palavras tinham uma energia contundente, de quem está acostumado a enfrentar os acontecimentos. A maior prova dessa energia, deu-a ele antes de ganhar o prêmio Nobel de Literatura, quando já passara dos 76 anos.
Tendo de fazer uma conferência na Noruega, tomou um avião que devia chegar a Oslo um dia antes do ato. O aparelho teve uma pane, caiu no mar. Dezenove pessoas morreram afogadas. Russell nadou durante algum tempo até ser recolhido por uma patrulha de salvamento. Chegando a Oslo, ficou indignado porque queriam transferir a conferência.
Teve Russell um mau começo de vida. Muito criança ainda morreram-lhe o pai, a mãe e a irmã. O destino da criança ficou dependendo de uma decisão judiciária. Foi o próprio Bertrand Russell que, no decorrer de nossa conversa de então, a 9 de dezembro de 1950, me disse:
"Meu pai era livre-pensador. Quando morreu, tinha eu três anos e havia em seu testamento uma cláusula referente à minha educação. Queria que eu fosse orientado na vida sem a menor superstição e indicava dois livre-pensadores para meus tutores.
O tribunal não aceitou esse testamento e eu fui educado na fé cristã. Os resultados foram decepcionantes, mas naturalmente a culpa era da lei. Acontece que um pai tem o direito de exigir que, depois da morte, seja insuflada, em seus filhos, qualquer superstição imaginável, mas não tem direito de pedir que eles sejam educados sem superstição".
Passou Bertrand Russell, até a puberdade, por um sem-número de governantas e tutores, sendo inteiramente afastado de outras crianças de sua idade. Angústias de ordem religiosa quase o levaram ao suicídio, mas, lendo a "Autobiografia", de John Stuart Mill, Russell abandonou as incertezas sobre Deus e o pecado: tornou-se agnóstico.
Preso à matemática e à lógica (ou logística) tinha Bertrand Russell de fugir à metafísica. Quando perguntei a Russell o que achava de Gabriel Marcel, disse-me: "Não é um filósofo: é um literato". Acrescentou que só um literato podia preocupar-se com a metafísica. Um discípulo de Russell, Alfred Ayer, que esteve no Brasil por volta de 1951, tinha a mesma opinião sobre Marcel.
Por coincidência, logo depois, Gabriel Marcel, que fora convidado para as festas de mais um aniversário da Universidade de São Marcos, do Peru, passou pelo Rio. Com ele conversei sobre o assunto e quis saber o que pensava de Bertrand Russell. Resposta de Gabriel Marcel: "É um bom matemático, com seguras incursões no terreno da lógica".
Além disso, foi também uma das maiores figuras da inteligência do Século XX. Sua luta era pelo homem e a mulher de seu tempo, podendo qualquer especulação puramente abstrata significar um afastamento dessa luta. O importante era o "hic et nunc" - o "aqui e agora" - e a situação em que se achava o habitante da Terra quanto a esse "hic et nunc".
O grave era que havia gente passando fome, e como permitir que tal acontecesse num tempo em que a produção de alimentos chegava ao nível a que chegara? Surgira uma guerra fria que não interessava a ninguém e consumia recursos que poderiam favorecer à maioria dos excluídos de então.
Pelos gestos, pela inflexão da voz, pela firmeza do olhar, era Bertrand Russell como um profeta lúcido da antigüidade, lutando pelo seu tempo e pela sua gente, e sua gente era todo o mundo.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 21/08/2002