Mais uma eleição com tudo o que ela, em si mesma, contém de significativo. E isso deve ser levado em consideração. Não se pode dizer que venha a constituir substancial avanço qualitativo da vida democrática. De modo nenhum. O que se observa, sem muito esforço, é antes a impugnação do trabalho político em favor dos respectivos arranjos eleitorais. A prometida reforma política continua sendo adiada, os partidos de aluguel prosperam, os baixos níveis de legitimidade nunca se alteram. Uma unanimidade contudo se mantém de pé, nacional e internacionalmente: somos medalha de ouro na olimpíada da desigualdade social. Sem levar muito em conta que jamais haverá redistribuição de renda sem distribuição equânime do poder político.
Assistimos mais ou menos perplexos ao trânsito vertiginoso do que fora, mal ou bem, a sociedade do trabalho para a sociedade do espetáculo e, provavelmente, para a sociedade do escândalo. A sociedade do espetáculo recebeu no Brasil uma versão mitigada, na qual se destacam os marqueteiros e as duplas sertanejas, todos incapazes de distinguir meios e fins.
A completa ausência de imunologias críticas facilita a contaminação e debilita o espaço público. E, debilitado, ele consome cegamente todo e qualquer artefato midiático. É o paraíso insosso, alimentando a orgia espetacular. Com efeito, o escândalo não deixa de ser a encenação histriônica do espetáculo. Porém tão estridente e malicioso que termina apagando o que foram as luzes da ribalta. O escândalo vem se fazendo íntimo, natural, familiar mesmo. Já não comove nem exaspera. Mergulhou no lodo tranqüilo da banalização. Lodo vivo. E, quando se associa à impunidade, fortalece-se e se multiplica. São componentes mistificados de farsa e burla introjetados na cena pública e, conseqüentemente, na vida cotidiana. A mídia eletrônica, mais até do que as outras, reproduz pontualmente, e quase nunca pedagogicamente, esse mórbido prazer do escândalo.
O eletroencefalograma dessa doença politicamente correta explica a proteção do escândalo ou da fraude publicitária. Quando perdemos as referências éticas, desaparece com elas a distância entre o espetáculo e o escândalo. Só que o espetáculo é aético, enquanto o escândalo é antiético. Em qualquer hipótese, não nos deve causar estranheza quando a sociedade do puro divertimento, do entretenimento absoluto, abre passagem para a sociedade do escândalo.
Tudo isso termina sendo efeito da ausência do debate político qualificado e idôneo. Fica difícil ou impossível avançar sem a ansiada, e jamais ociosa, reforma política. Caso contrário teremos de suportar a alta cotação do escândalo na bolsa de valores da aventura eleitoreira. Já se pode divisar uma espécie de tipologia do escândalo: escândalos apurados, abafados, produzidos, falsificados. O que não se conseguiu ainda foi separar a fraude do escândalo, do escândalo fraudado. E não é justo culpabilizar o Ministério Público nessa matéria em que todo cuidado é pouco.
O Executivo e o Legislativo necessitam dialogar mais, abertamente, chegar a um acordo sobre medidas permanentes, em vez de monologar sobre medidas provisórias. O Judiciário, ao que tudo indica, não atravessa um bom momento. Fato preocupante para qualquer democracia, especialmente aquelas em lenta construção.
Enquanto isso, a sociedade, refém do espetáculo e do escândalo, procura entender as coisas, emaranhada em um excepcional déficit político. Falta política ao desempenho político. A cidadania se esmaece no lusco-fusco dos refletores que, em alta voltagem, fabricam a duvidosa "cibercidadania". O pacto perverso entre cultura do entretenimento oco e fundamentalismo de mercado se sente estimulado. É nesse clima propício que se sucedem as mais diversas e disfarçadas formas de dirigismo cultural. Tem sido assim, em várias partes do mundo. E o remédio jamais foi encontrado na proscrição do político, porém na sua intensificação, no alargamento tenaz do espaço público, na democratização do direito à imagem e ao som. Sem que o governo monopolize nem o Estado nem a sociedade.
Como se não bastasse todo esse conjunto de adversidades, destaca-se hoje a perigosa aliança de religião e mídia eletrônica. É o modelo showmício se generalizando. É o "reality show" invadindo todas as camadas da vida social e vendendo, por preços módicos, espetáculos e escândalos. Com alguns agravantes. O escândalo, por exemplo, tem memória curta. O brasileiro também. E, quando se juntam o escândalo e o brasileiro, a amnésia se alastra assustadoramente. Da amnésia à deliqüescência o passo é pequeno. Passamos a repetir velhos números de um repertório caduco. Tudo o contrário da invenção política. Já é hora de cuidarmos do nosso déficit-democrático.
Folha de São Paulo (São Paulo) 10/10/2004