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De valores e dogmas

 

Nada mais estranho à cidade do Rio de Janeiro, irreverente e libertária, afeita ao sincretismo, do que ser chamada a escolher entre ícones de duas religiões. É a isso que estamos condenados, nós, os que não subscrevemos nem às igrejas do reino de Deus nem às do reino da terra? 

Há um eleitorado órfão que ancora em uma terceira margem. Acreditamos nas liberdades individuais, no direito de cada um ser autor de sua biografia e, quando não acertamos, admitimos erros, não pecados. Acreditamos no direito das mulheres e dos homens sobre seu corpo. Somos a favor da descriminalização do aborto e acreditamos que a violência contra as mulheres — sobretudo o estupro, gravíssima violação de direitos humanos — são problemas incontornáveis de saúde e de segurança pública. São questões democráticas, assim como a odiosa discriminação e agressão contra gays, que há muito deveria ter sido proscrita em nossa cidade.

Queremos erradicar os vestígios da escravidão, que não são poucos, e contribuir para que a cidadania plena seja conquistada por todos os que vivem aqui. Consideramos o racismo abominável e nos orgulhamos dessa cultura ímpar que é a carioca, mestiça, capaz de conviver com as divindades de qualquer religião. Que todos os deuses do Brasil assim nos conservem.

A intolerância religiosa não rima conosco.

Somos muitos a pensar assim, gente com convicções mais do que certezas, valores mais do que dogmas, querendo viver em uma cidade mais humana, igualitária e segura. Foi lutando por tudo isso que moldamos nossa visão da democracia como apreço pela liberdade de expressão, pelo livre pensar, longe das doutrinas autoritárias que mais se assemelham a religiões laicas, das ideologias que cegam e transformam escolas e universidades em palanques. Ideologias em que o partido se quer o todo. E é a verdade. Os outros, os que não endossam sua leitura da sociedade, desqualifica como inimigos. 

A intolerância ideológica também não rima conosco.

O abismo que separa o viver e as faixas de renda da população, a pobreza onipresente, é uma tragédia a qual não podemos nos acostumar. Superá-la, é obrigação política e moral de quem se apresenta para nos governar. E um desafio à sua competência. Um elo de causa e efeito liga a corrupção e o favoritismo com os companheiros ao desgosto cotidiano com os serviços públicos. A tolerância com a corrupção contribui para o agravamento da pobreza quando faz escola e impede que escolas e creches sejam feitas. Corrupção e combate à pobreza são incompatíveis, e não há malabarismo marqueteiro ou impostura ideológica que consiga explicar essa aliança espúria.

A capacidade de admitir erros e corrigi-los, de ouvir quem discorda de nós, é um valor raro nos tempos que correm, essencial à convivência democrática e ao bom governo. Nossas convicções, se não estivessem, elas mesmas, abertas à contestação, também seriam dogmas. 

Crivella e Freixo conquistaram, numa eleição rigorosamente democrática, o direito de disputar o segundo turno. O eleitorado que não se reconhece em nenhum dos dois terá que dialogar com eles. E vice-versa. Os candidatos terão que respeitar essa parcela da sociedade que tem com os dois diferenças abissais. E agora?

Agora está aberto um amplo campo argumentativo, o que de melhor a democracia oferece a quem, entre si, discorda. Porque é certo que esse eleitorado, vá ou não votar, vote branco ou nulo, não vai renunciar a pensar e agir no espaço público, o das sociedades contemporâneas, conectadas e participativas, que não param de se interrogar sobre si mesmas, não ecoam palavras de ordem e não pedem licença para escrever ou falar. Transformam-se ao impulso de incontáveis iniciativas que não necessariamente partem do governo ou dele dependem. 

Os eleitores que não se identificam com os candidatos, que não são membros de uma igreja ou de um partido, continuarão a agir em defesa de seus valores e a provocar novas dinâmicas na cidade. Há uma ecologia da ação que provoca resultados onde menos se espera. Porque se é o prefeito quem nos governa, isso não o faz senhor de toda a sociedade. 

O poder não se esgota no poder. Nem a democracia nas eleições. Freixo e Crivella, um ou outro governará uma cidade insubmissa, senhora de uma cultura própria e, ao mesmo tempo, cosmopolita, aberta à invenção de modos de vida. Quem quer que seja o eleito, quisera que logo entendesse que é a cultura da cidade que estará sempre no comando. E essa cultura, afeita não propriamente à fé, mas certamente à esperança, só respira em liberdade.

O Globo, 08/10/2016