Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > De quem é o sotaque?

De quem é o sotaque?

 

O ator português Raul Solnado costumava contar uma piada que tem o seu toque de realismo: "Nós é que demos a língua a vocês e agora o sotaque é nosso..." Claro que, nessa história, pesa muito a população de 174 milhões de brasileiros.


A nossa preocupação, no entanto, é outra. Pouco importa se a pronúncia é Basco da Gama ou Vasco da Gama. Sempre será reconhecido o grande navegador português e o não menos famoso Clube de Regatas. O problema é que dispomos de uma língua com mais de 360 mil vocábulos - e mesmo assim, norma culta ou não, estão surgindo outras formas vernaculares que se tornam comuns, o que não nos parece que mereça ser desconhecido.


Outro dia, um eminente político me deu um grande abraço e disse que no Senado da República eu tenho um grande cartaz: "O pessoal lá admira muito quem entende de ciência e tecnologia." Isso casa com a forma alternativa areoporto ou até mesmo com o luxuoso extrordinário, que se tornou moda nas rodas acadêmicas. Como até há pouco era bastante comum falar-se em areoplano, algo que representaria, de forma equivocada, o grande invento do patrício Santos Dumont. Se desce um areoplano num areoporto, que diabo quer dizer isso?


Não se trata de uma crise momentânea, mas de costumes que se vão arraigando. A televisão, sobretudo com as suas novelas, de grande repercussão, colaboram para esse movimento, isso sem citar os problemas de concordância, regência ou colocação pronominal. Quantas vezes ouvimos o famigerado "houveram" mal empregado? Inclusive, uma vez, em horário convocado pela Presidência da República, para que o ministro de uma pasta que não deveria errar dessa maneira soltasse um tonitroante "houveram", machucando milhões de ouvidos. Reclamar isso é ser inoportuno ou exigente com a língua de Rui Barbosa, Antenor Nascentes e Laudelino Freire?


Ao acabar de ler o atraente livro dos médicos Aziz Lasmar e José Seligman, intitulado "Humor em pílulas" (Revinter), predominantemente sobre histórias reais vividas em hospitais, casas de saúde e consultórios médicos, registrei uma série de palavras que poderiam compor o que chamamos de linguagem popular. Não se trata de batizar de certo ou errado, mas adotar o critério adequado ou não adequado. Se os termos são ditos em refinados salões sociais, é claro que machucam os ouvidos, mas em outros ambientes soam como naturais. É o caso de Framengo ou Fruminense. No Maracanã, quem há de estranhar?


Do livro referido, anotamos palavras que hoje fazem parte do usual vocabulário. Vejamos alguns exemplos extraídos da bem-estruturada obra de humos: ocris (óculos), vremeio (vermelho), amida (amígdala), mermão (meu irmão), estombo (estômago), pobrema (problema), embolância (ambulância), dismorragia (hemorragia), etc. Palavras ou expressões resultantes do permanente diálogo de médicos e enfermeiros com a população mais pobre do Rio de Janeiro. Isso representa um choque cultural, que cabe analisar com os cuidados devidos.


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) em 08/09/2003

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) em, 08/09/2003