É uma pena que o presidente Lula não seja nordestino e, portanto, não conheça bem a farta presença sociocultural do caju naquela remota região do país. Talvez devamos creditar aos poucos anos passados em Pernambuco a epifania que parece tê-lo acometido, quando ele, enquanto o Supremo avaliava denúncias gravíssimas contra velhos companheiros seus, sopesou um caju como Hamlet ao crânio de Yorick e, talvez emocionado, sentiu-se filosófico. Presumimos isso porque chegou a iniciar um solilóquio, em que, evocando em quem o via outra imagem hamletiana ("há algo de podre no reino da Dinamarca"), queixou-se de injustiças que suspeitava haverem sido praticadas contra o caju.
Ficou na intuição, talvez em semitranse atávico, pois, afinal, seus ancestrais são nordestinos, mas o solilóquio, que se saiba, não teve prosseguimento. Diria um filósofo, quiçá, que lhe faltou embasamento empírico. Sem conhecer bem o caju, não pôde verbalizar o que lhe ia n'alma inefavelmente. Ou, quem sabe, estava elaborando mais uma de suas metáforas e comparando o caju aos acontecimentos. Aquilo tudo passaria e, como sempre, ele não teria nada a ver com nada, nada saberia, por nada era responsável. Mas, da mesma forma que o mau caju, deixaria o que chamam de cica ou sarro, aquele travo desagradável na boca de quem o experimenta e que parece que nunca vai embora. Muito chato - há de ter pensado - precisamos evitar que alguém diga que nunca houve governo com um sarro tão forte quanto este.
Quem sabe se, em nova metáfora, o caju não lhe terá lembrado rancorosamente a Zelite? Talvez lhe tenham contado que, lá na supramencionada região remota, que só serve para manter-se atrasada, assim facilitando o manejo de votos, os cultivadores de caju praticamente só colhem a castanha, deixando a parte maior e sumarenta desprezada, apodrecendo em vastos tapetes lamacentos sob as árvores. Sim, a castanha é integrante da Zelite - e o cajuzão é jogado fora e ainda xingado de pedúnculo. Deve dar para ajeitar isso, a fim de que pareça fazer algum sentido, e usar em mais um inflamado improviso. "O pobre vai deixar de ser pedúnculo e passar a ser castanha¡" poderá bradar ele. Ninguém vai entender nada, mas isso, como estamos cansados de saber, não tem importância. O pobre sempre quis ser castanha e vai continuar querendo, embora mais conformadinho, com sua Bolsa Família, que é a parte que lhe cabe neste cleptofúndio.
Mas outras coisas cajuais o presidente com certeza desconhece. Notadamente em algumas áreas, o caju é meio chatinho e só dá uma safra relativamente curta por ano. Daí dizer-se, de algo que acontece a grandes intervalos ou infreqüentemente, que é "de caju em caju", como na frase "o médico do posto só aparece aqui de caju em caju". Sim, ele não sabe, mas fica a sugestão para sua assessoria. Admirar a sabedoria da Natureza está na moda, de forma que pode ser desenvolvida uma bem feita campanha publicitária, para explicar fatos às vezes difíceis de entender, como, por exemplo, este ano já estar praticamente acabado e nada ter sido efetivamente governado. Adote-se o cajueiro - que ainda tem a vantagem de ser cem por cento brasileiro - como símbolo da Natureza. Mostrem-se belos, lustrosos e opulentos cajus penduradinhos nas árvores e ponham por trás a voz comovida de um locutor contando como, para produzir aquela maravilhosa beleza, a Natureza demora muito, às vezes até falha. E assim o governo se inspira na eterna sabedoria dessa árvore nacional, inclusive os deputados, que faz muito só se reúnem de caju em caju. Então vamos entender que o governo só faça alguma coisa também de caju em caju, se bem que haja quem venha se queixando de safras muito magras, mas são os eternos descontentes.
Caju também lembra caju-amigo. Sim, os amigos, hem? Ele continua a gostar deles, segundo se diz, mas é obrigado a afastar-se, ao menos publicamente, mais um sacrifício desta vida tão sofrida. E, para sublinhar sua inocência, teve mesmo que dizer a todos que fora traído. Nunca revelou por quem, mas as pessoas de boa vontade entenderiam por que falou assim. E de novo o socorreria algum conhecimento adicional do caju, no caso o caju-amigo. Safados nordestinos fazem um caju-amigo singular, em que convidam moças para um sítio e lhes servem cajus prévia e secretamente injetados com cachaça. Aí a virtude das moças, coitadinhas, cai com facilidade nos ardis libertinos desses inescrupulosos. Se soubesse disso, ele poderia ter dado uma explicação mais popular e assimilável pelo povão. Ainda metaforicamente, ele diria ter sido vítima do mesmo tipo de truque. "Confiei e o que fizeram foi me dar uma fruteira cheia de caju-amigo." E concluirá, triunfante e idolatrado pela massa: "Mas o que eles não contavam é que eu sou espada!"
Mas não posso mais deter-me naquilo que os pósteros com certeza celebrarão reverentemente como a Meditação do Caju. Há que lembrar também a relevância desse extraordinário fruto para a plena compreensão do que acontecerá doravante com os quarenta do mensalão, entre os quais talvez haja inocentes. O que acontecerá é nada. Quer dizer, os implicados enfrentarão diversas chateações com advogados, audiências, depoimentos, acareações e mais não sei quantos atos processuais, mas, no fim, se é que esta geração ou os próprios acusados ainda estarão vivos quando se chegar ao fim, não vai acontecer nada. De caju em caju, os anos passarão, os recursos e firulas jurídicas rolarão, gavetas funcionarão, documentos surgirão e sumirão, os tempos serão outros, a maioria das testemunhas só vai poder ser ouvida em sessões espíritas e tudo acabará em cajuada. Vai ver, a Meditação do Caju se resumiu a isso.
O Globo (RJ) 2/9/2007