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A dança das palavras

 

Em boa hora aparece, no centenário de seu nascimento, a reedição de poemas de Augusto Frederico Schmidt (1906-1965), poeta que se insere na melhor tradição da lírica brasileira ao mesmo tempo em que pode ser colocado no grupo dos que analisaram seu tempo e sua gente com o entusiasmo de um pregador de idéias. Poucos brasileiros do século XX terão tido a qualidade que o distinguia: a do analista apaixonado.


Em estudo sobre poesia, exalta Robert Graves as excelências da análise feita com paixão. É que, para quem seja pouco afeito à essencialidade das coisas, à mistura da análise e paixão pode parecer contraditória. O comum é existir uma ou outra. O analista frio. Ou o apaixonado sem análise.


Contudo, só é possível poesia plena quando análise e paixão se juntam. E, da poesia, podemos passar a tudo o mais: a crítica literária, a direção dos negócios públicos, a gerência de empresas, a compreensão de problemas coletivos, a simples e difícil função de ser gente.


Pode estar nisto a raiz das oposições que se lhe faziam. Porque este brasileiro raro conseguia ainda ser uma coisa raríssima: um poeta com dinheiro. Tratavam-no mal por isto. Poeta rico? Impossível.


Opondo-se ao conceito geral de que não se pode ser um poeta de verdade sendo ao mesmo tempo rico, ele era as duas coisas e, junto com Juscelino Kubitschek, foi também político e passou a defender a tese de um Brasil Grande. Neste ponto, atraiu a contestação dos que estavam contra Juscelino.


Lembro-me de que, durante a visita ao Brasil, de Leopold Sedar Senghor, presidente do Senegal, reuni, com a aquiescência do Itamaraty e da Embaixada do Senegal, um grupo de poetas brasileiros em minha casa a fim de se encontrarem com o visitante. Lá estavam Carlos Drummond , Bandeira, Schmidt, Nilo Aparecida Pinto, Homero Homem, entre outros. Senghor e Schmidt mantiveram longa conversa sobre como podia um poeta dirigir um país.


Poeta que se assemelhou a Schmidt, mesmo sob um aspecto em que as semelhanças são difíceis, foi o americano Wallace Stevens. Este advogado de seguros, residente na cidade de Hartford, Connecticut, e morto na década de 50, era um excelente e muito bem sucedido homem de negócios, além de poeta fora do comum, dos melhores do século XX, embora não muito conhecido fora do mundo de expressão inglesa. Nos Estados Unidos de então houve críticos literários que estranharam ser Stevens um rico homem de negócios, mas não se atreveram a diminuir o poeta por causa desse "defeito".


Podemos ver hoje, a 41 anos de sua morte, como a poesia de Schmidt falava por nós. Atingira ele um domínio sobre as palavras, raro em nossa poesia. Para ele as palavras dançavam, os substantivos se movimentavam em ritmos inesperados, às vezes numa simples sucessão de sílabas claras, em verdadeiros carinhos vocabulares, inseria Schmidt toda força de um poema inteiro.


Ao mesmo tempo em que fazia as palavras dançarem, ele se dependurava nelas como elementos solitários de uma declaração de amor ou de uma busca do mesmo. É conhecida a resposta que deu Mallarmé ao pintor Degas. Reclamava este que tinha idéias maravilhosas mas, quando as punha num papel, elas não queriam dizer nada. Explicou Mallarmé: "Meu caro Degas, poesia não se faz com idéias; poesia se faz com palavras."


Esta, a força do poeta Augusto Frederico Schmidt, força que o manterá sempre na posse de palavras que dançam para ele como dançam para nós. Veja-se que até a simples enumeração de seus títulos revelam o fascínio de suas palavras: "Navio perdido", "Pássaro cego", "Canto da noite", "Estrela solitária", "Mar desconhecido", "Fonte invisível", "Mensagem aos poetas novos", "Aurora lívida", "A casa vai descendo o rio", "O caminho do frio", "Eu te direi as grandes palavras".


No caso das "Grandes palavras", solta-as para que dancem e faz o mesmo com os nomes de adolescentes, nomes que dançam na espera de que a vida comece - Blenise, Arcângela, Simoneta, Marta, Briolanja, Mirtes, Lice, Lenit, Nise, Stela, Maria e Beatriz - cada nome sendo gente e sendo uma palavra, nomes cantando como fontes, nomes brejeiros como tranças de colegiais nos recreios.


Na força de sua lírica, não se detêm Shmidt diante de qualquer bom-mocismo. Não fugia a debates, não deixava assunto de interesse público sem nele entrar com propriedade e em espírito de realidade e de poesia. Daí, a clareza de suas opiniões sobre poesia e sobre a literatura de seu país. Nos muitos programas de televisão de que participei com ele, nunca o ouvi recuar de uma opinião e deixar de lutar por ela. Discutia tudo com seriedade e ao mesmo tempo com a paixão de quem sabia que a palavra é a base de tudo.


Permanecera entre nos com sua poesia e suas palavras, que fez dançar diante dele e que hoje dançam diante de nós. Deixou conosco a certeza de ter cumprido a missão de poeta e de brasileiro, com a rara dignidade do analista apaixonado.


"Um século de poesia" reúne uma série de poemas escolhidos de Augusto Frederico Schmidt, numa antologia que vem confirmar a força e a ampla poética da obra que nos deixou. Seleção e organização de Letícia May e Euda Alvim. Prefácio de Heitor Ferraz Mello. Lançamento da Editora Globo. Estabelecimento do texto de Waldir Ribeiro do Val.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 7/2/2006