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Da utopia

 

É uma constante nos momentos pragmáticos que vivemos dizer que chegamos a uma época na qual todas as utopias desapareceram. Procuram vincular esse pensamento à morte das ideologias: o mundo em que vivemos não aceita mais dogmas, chegamos ao fim da história que é o desembarque no liberalismo econômico e na democracia política; os países que ainda não estão nesse caminho são desvios da marcha inexorável do progresso da humanidade.


A palavra utopia está associada a uma idéia política. É obrigação acaciana falar que ela vem do livro com esse titulo que escreveu Thomas Morus. Ele era um crítico da sociedade inglesa, suas misérias, suas injustiças, suas violências e submissão à vontade dos reis. Numa dimensão maior, com Erasmo de Roterdã, seus conceitos se estendiam a toda a Europa. Para dar uma visão clara do que pensava, idealizou uma ilha onde todas as pessoas viviam numa comunidade de bens, sem propriedade. É a primeira construção do que viria a ser o sonho socialista. Morreu decapitado, pateticamente afirmando "Sou um bom súdito do rei, mas Deus está acima de tudo". Mas, pensando bem, em "A República", Platão põe na boca de Sócrates como os homens deviam se organizar num Estado justo. A utopia de Platão é autoritária, a de Morus é democrática.


Daí vêm a palavra, a idéia e o sonho. É a visão do impossível e por isso mesmo incendiou o pensamento do homem. Era o céu que podia ser na terra e assim jamais ser.


Há algumas décadas se escreve sobre a morte das ideologias. Mas, se há uma coisa que não morre, é a visão de uma existência de igualdade e de bem-estar de todos os homens. A própria imortalidade é uma utopia. Não interessa que ela seja irracional, o fundamental é que ela exista.


Essas idéias me chegam quando se discute o que devia ser a política, seus costumes, seus procedimentos e fins. Há uma sensação de que o passado era um manto de pureza e ética, uma coisa assim "como era verde o meu vale". Cada um de nós vive de sua própria utopia que, como toda utopia, jamais será alcançada.


Marx criou a utopia do comunismo, que, como tantas vezes tenho repetido, é um idéia generosa, de uma comunidade igualitária. Infelizmente ela degenerou no socialismo de Estado, cujo instrumento de implantação foi o terror, a ditadura do proletariado, e fez essa coisa impossível de matar as utopias.


Eu acho que o que está faltando, o que está em crise é justamente a presença de utopias. A juventude não pode viver sem elas. Quando desaparecem, vêm as drogas, o alcoolismo, o niilismo, enfim, a busca da sublimação dos prazeres. Toda motivação de vida das pessoas deságua no egoísmo, no consumo e na acumulação de bens materiais, a todo custo, criando a moral da Lei de Gérson - "Quero levar vantagem em tudo".


O que ocorre atualmente no Brasil são exatamente os efeitos dessa causa fundamental, do fim das utopias pessoais, que, estas sim, estão morrendo.


Então, até os árbitros de futebol se corrompem. O futebol deixou de ser, para eles, a utopia da beleza dos jogos, mas a lama da fraude nas arbitragens.


Se nem o futebol escapou, quem escapará? Sem dúvida nenhuma a turma do "mensalão" e o exemplo do "mensalinho".




Folha de São Paulo (São Paulo) 30/09/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 30/09/2005