A Conferência do Cairo, da Academia da Latinidade, dedicou-se às perguntas críticas sobre o equívoco do diálogo das civilizações em nossos dias. Não nos damos conta ainda da distância abissal que nos separa do raiar deste século, quando a derrubada das torres de Manhattan nos deixaram a anos-luz da cultura da paz e do desarme com que esperávamos ter vencido o mundo dos muros, dos holocaustos e da. guerra dos botões nucleares.
Só deparamos o começo de uma civilização do medo, tendo como pano de fundo o avanço de uma "guerra das religiões", tal como deixava pressentir o terrorismo inédito que se abateu sobre essa nossa estupefata e dita modernidade. Não é só, de um lado, a Al-Qaeda que pode ser vista como o vilão máximo desses atentados continuados, mas, a seu lado, os talibãs e os novos "jihads" britânicos ou espanhóis ou os agressores líbios da catástrofe de Lockerbee.
É como se o sentimento difuso de vindita se desse conta, atrasado, dos ônus da dita civilização, vista, nesses últimos dois ou três séculos, como uma expropriação da alma trazida ao imo mesmo das nações submetidas à dita dominação do progresso e da racionalidade. Quando será derrubada a torre mais alta de Chicago, ou o edifício da Biblioteca de Los Angeles, nesse receio nada imaginário pelo qual o império americano passou ao mundo do medo e da guerra preventiva? Mais ainda, a justificar-se como defensor da civilização cristã, levando seus missionários ao lado das tropas no Iraque para a possível evangelização do inimigo, com condição implícita para ver nos olhos os outros povos.
A conferência quer dar-se conta, sobretudo, de como, ao lado da guerra das religiões, essa busca nova das identidades nacionais, em tempos do terrorismo, exige uma afirmação radical da sua identidade ameaçada e que vai aos reclamos e às esperanças da transcendência. A laicização, como o resultado do mundo das luzes, não entende que o Islão pode entender os direitos humanos como "ideologia ocidental". E no universo religioso do Corão a realidade cívica se confunde com a sagrada, em todas as novas reservas com o gentio e os "outros". Conceitos mesmo como os de "tortura" ou de "mentira" entram em ambigüidade. Trava-se o caminho de uma mesma consciência internacional que condene os crimes contra a humanidade.
A Conferência do Cairo quer, sobretudo, buscar uma visão crítica e não ingênua de uma retomada do diálogo, fora do mero voluntarismo de governos de boa vontade ou de ONGs de todas as utopias. Há que desobstruir um alegado conflito entre o Corão e o Evangelho, numa semântica comum, para uma convivência num espaço cívico, em que o outro não seja mais o inimigo, divisado dos fortins da Casa Branca de Bush, ou das tocas dos talibãs. E o grande trunfo da expectativa de um encontro das civilizações que abra mão, humildemente, de toda euforia do diálogo nasce do próprio exemplo da vitória democrata nos Estados Unidos, e do caso histórico único de Império, que volta às suas origens, pelo retorno à democracia profunda. Vai ao mais decisivo dos desarmes da civilização do medo. O Nobel dado ao presidente americano não é uma aposta temerária no futuro, mas a certeza do quanto a nação de Obama torna, por si mesmo, obsoletos os arreganhos do "eixo do mal" de seu pre-
decessor no Salão Oval.
Jornal do Commercio (RJ), 30/10/2009