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Crise e subcultura política

 

O vai-e-vem da instabilidade nesses últimos dias finalmente parou em anticlímax pela concordância do governo com a CPI dos Correios. A expectativa de iminência de abalo do regime é uma compensação imediata, ao não deparamos os sinais claros de um governo em movimento, e de nítida realização de suas metas. Não alcançamos a verdadeira maturidade política de um cotidiano, sem fogos de artifício nem traumas, tal como resistimos ainda à severidade das rotinas de normalização continuada de um Executivo à obra. Da euforia, que não vem, passa-se ao escândalo logo de todos os pânicos e urdiduras. O velho establishment político brasileiro continua preso ao catastrofismo de rigor, próprio às tribos do situacionismo de todo o sempre, por uma vez desatarraxados do poder no Planalto.


O Brasil de Lula põe a teste, agora, o entrar, ou não, no jogo, que é o da última herança do status quo. Não é esse o palco de cobranças do país que o elegeu. Nem o Brasil de fundo comove-se com os moralismos que se fizeram o mote da desestabilização sempre, até certo ponto, do sistema político nacional. Não é a corrupção agora, no seu badalo e nas suas sirenes gastas, que porá a perigo um regime passado por todas as indignações cutâneas de há mais de meio século, do processo dos Anões à derrubada de Collor. Nem há que refazer o aluvião das comissões de inquérito, todas a dar em água de barrela.


É a corrupção inseparável do subdesenvolvimento, castigo e doença da casa, a só se resolver no longo e lento processo global de mudança, e este decantado mas não menos contundente avanço da cidadania. Ao mesmo tempo que o reconhece explicitamente o governo Lula, atentou a que mais uma CPI é a treta gasta a colocar o governo, como um todo, na defensiva, às vésperas de novo mandato e, aí sim, do dizer ao que veio e propõe ao país. A crise mesma é, sim, a do quanto tolerará o Brasil o demorar do anúncio do propósito, do recuar na repartida, ou dar conta do que prometeu. O sucesso do PT, numa escala de abertura de horizontes só comparável, neste aspecto, ao de JK, acresce-se a perder a oportunidade histórica única de siderar o país, por um projeto-símbolo, que espancasse a alcovitice e o rame-rame do Brasil dos cartolas, coronéis e donos de terreiro, das nossas capitanias políticas.


O colapso de Collor já levou o processo de mudança brasileira ao exorcismo deste tipo de denúncia do que ainda possam pretender os propugnadores da inquirição parlamentar. Não se abalará mais um governo, pelo inquérito a mais, nem há gotas d'água para extravasar a paciência domesticada do país da corrupção denunciada. Começa a superação de um quadro generalizado da subcultura, que embala a ópera exausta da moralismo. Fora do Congresso, e seus pretensos donos de opinião pública, depara-se uma consciência política nova, de que se quer voz o PT dos seus fundadores.


Na concordância com mais uma Comissão o governo deu-se conta da vitória de Pirro em que, afinal, e em qualquer desfecho, as oposições lamberiam pobremente os beiços. Passivo maior, sim, será o de, na justificativa de uma pretendida desestabilização, o partido congelar a sua própria renovação interna - e adiar as eleições de sua diretoria para o novo mandato crucial, que ora se abre. A realpolitik da coalizão replica no plano político à excessiva estabilização financeira, pelo espartilho das taxas de juros e do garrote orçamentário do primeiro biênio do governo, Palocci e Dirceu se reúnem na mesma opção do jogo oferecido ao presidente, no risco calculado a se pagar para a chegada do PT à sua verdade histórica no novo mandato.


O governo não terminou por conceder à oposição o que sempre cobra no ''script'' das crises, no marco do cansaço esperado, do tudo que possam prometer fitas e revelações arrasadoras. Por elas não passa a cobrança real do voto futuro, nem o sentimento do país de fundo, cujo apoio nada tem a ver com os percalços do presidencialismo. O que esse Brasil fiel à Lula enxergará é o emperro do Congresso dos Severinos e da cosanostra confundida com a República. Mais que um PT vulnerado, o que os próximos meses podem evidenciar é a perigosa aproximação da imagem do Congresso como inimigo do povo. Nunca o baixo clero fez-se tanto alvo para o seu banimento das urnas, tanto quanto a corrupção que se varra não é tarefa do vedetismo congressual, mas da nova e contínua litigância cidadã.




Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 15/06/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 15/06/2005