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Creio que nem Antônio encara

 

Estive pensando sobre o dia de hoje e a ingratidão humana me veio logo à mente. Com exceção de alguns poucos devotos e devotas (não estranhem que eu agora viva diferençando os gêneros, desta forma antes inusitada; é que também desejo, queridas leitoras e queridos leitores, ascender à norma culta de Brasília; e por isso mesmo também observo que, para se estar na boa prática do bem falar atual, hoje devia ser Dia dos Namorados e das Namoradas), ninguém lembra a grande figura por trás da instituição do Dia dos Namorados. Nós, brasileiros e brasileiras, somos muito ingratos.

Refiro-me ao santo de amanhã, o grande Santo Antônio de Pádua, também chamado de Lisboa por ter nascido lá. Dos mais milagreiros da tradição católica, que pregava em praças por não caberem nas igrejas as multidões que queriam ouvi-lo, ele chegou com os portugueses e fincou pé definitivamente no Brasil. Na Bahia, que, para começar já é de todos os santos (e santas, e santas), é difícil um santo se destacar, em meio à grande e operosa concorrência sempre em ação. Mas ele detém um lugar de honra de cuja majestade jamais será desvestido, não importa que o esqueçam uns e outros mal-agradecidos.

Nos tempos apressados que vivemos, em que certamente muita gente deixa de rezar porque os santos não estão nas redes sociais e talvez a divindade não aceite se tratada por “vc”, nem atenda a convites para “tc”, Santo Antônio, acredito eu, não tem nem uma fração do trabalho que tinha antigamente. Mas ainda deve haver muitas novenas pelo Brasil afora, além de promessas e simpatias, em algumas das quais reclamam do santo graças não concedidas e descontam nas imagens, pondo algumas de cabeça para baixo o ano inteiro ou afogando outras. E chegavam a responsabilizar o santo por ocorrências com as quais ele com toda a certeza não tinha nada a ver, antes pelo contrário. No tempo em que se esperava que as moças se casassem virgens, era conhecido o golpe de certos pilantras que, com muita conversa, acabavam pedindo à noiva ou namorada uma “prova de amor”, codinome para uma transadinha. Todo consultor sentimental das revistas românticas e toda noveneira de Santo Antônio reprovavam enfaticamente a prova de amor, até porque, assim que ela era dada, o cafajeste sumia. Contudo, testemunhei casos de gente culpando o santo, até mesmo quando a prova de amor resultava em gravidez – o que certa feita obrigou padre Brito, em exaltado sermão, lembrar às paroquianas queixosas que o santo fornecia o namorado, mas o resto quem fornecia eram elas.

A não ser pela fama de casamenteiro, as pessoas sabem muito pouco sobre Santo Antônio, porque os livros que tratam dele cuidam apenas do muito que ele fez de importante na Europa, mas nada historiam de suas grandes façanhas no Brasil e, particularmente, na Bahia. Em Itaparica mesmo, ainda há uns antigos que lembram algumas dessas façanhas e Vavá Paparrão, que protagonizou uma delas, infelizmente já nos deixou, mas me contou a história, de maneira que a repito aqui, só para vocês verem quem é Santo Antônio (e Paparrão também, só que este nunca foi santo, como já denuncia sua alcunha).

Santo Antônio, saibam vocês (“vocês e vocezas”? já está valendo isso?), foi oficial do exército português, no tempo da colônia, com direito a soldo e tudo. Não sei bem como é que aconteceu, mas deu-se que Portugal estava levando a pior contra os holandeses e, aparentemente, Santo Antônio não moveu uma palha para entrar na luta, apesar dos esbregues que seu xará padre Vieira lhe dava, nos sermões tremendos que fazia, na catedral de Salvador. Em consequência disso, o santo foi rebaixado de patente militar e deve ter sofrido mais alguns aborrecimentos, porque o fato é que resolveu participar da briga e acabou ajudando a botar os holandeses para fora lá da ilha.

Mas algum trauma deve ter perdurado, porque até hoje em dia, sempre que aparece um fantasma de holandês assombrando lá na ilha, basta pedir valência ao santo e ele acode. Em frente a Itaparica, há uma ilha desabitada, chamada ilha do Medo, porque diz o povo que os holandeses se escondiam lá. Pois foi nessa mesma ilha do Medo, onde foi obrigado a passar uma noite por causa de um temporal que quase afunda sua canoa, que Vavá Paparrão foi ameaçado por um batalhão de fantasmas holandeses. Vavá gritou “meu Santo Antônio!”. E o santo veio com um cajado que mais parecia um tronco e passou a noite baixando o cacete nos holandeses. “Ele brigava bonito”, me contou Vavá. “Se não fosse ele, os desgraçados tinham acabado comigo.”

Sabendo como o santo é disposto e, agora que as moças não fazem mais tantas novenas, deve andar bem menos ocupado, foi que Jacob Branco segundo apressado relato que me fez por telefone, pediu a uma beata do Alto das Pombas, que sempre sonha com o santo, que perguntasse a ele se não dava para ele pegar aquele porrete de achatar holandês e vir dar um jeito na situação aqui da pátria amada, que já está botando ladrão pelo ladrão. Jacob contou que no começo, ele desconversou. Deu uma risadinha e disse que procurassem o santo padroeiro das desinsetizadoras. Mas aí Jacob insistiu e ele prometeu falar com São Dimas, que é o padroeiro dos ladrões. Não deu certo. São Dimas ficou até meio injuriado com essa conversa. Padroeiro dos ladrões, sim, mas dos ladrões arrependidos. E alguém acha que ele já não tinha vasculhado tudo, para ver se achava um ladrão arrependido aqui no Brasil? Nem para remédio. Pelo contrário, havia cada vez mais arrependidos, isso sim, de não terem roubado mais. E, sem arrependimento, não dá. Sem arrependimento, nem Ele em pessoa perdoa.

- Deve ter sido gozação – concluiu Jacob. – Mas São Dimas disse que, quando vem ao Brasil, deixa a bolsa no céu.

O Estado o de São Paulo, 12/6/2011